O sentimento de união, em novos “tempos do cólera”, se torna menos percebido e, paradoxalmente, mais necessário em nossa sociedade eivada de divisões. Essas, as mais das vezes, provocadas por aqueles que têm o dever moral de combatê-las. Domingo (9/5), a coluna do escritor peruano Mario Vargas Llosa (Estado de São Paulo) baseou-se em uma entrevista com a professora espanhola Carmén Iglesias, entre outras qualificações, antiga maestra de história do Príncipe de Astúrias, atual rei da Espanha, Felipe VI de Espanha (https://metahistoria.com/carmen-iglesias-historia-en-tiempos-de-pandemia/).
É uma conversa de fôlego sobre a ocorrência de pandemias, suas consequências e reflexos, e a maneira como as pessoas do povo, os cientistas e os governantes lidaram com as pestes a partir do conhecimento científico, religioso e mundano de cada época. Na viagem pelo tempo, a professora enfatiza que os seres humanos repetem, em maior ou menor grau, comportamentos pendulares entre o egoísmo ferino em certos casos e a generosa solidariedade heroica em outros momentos.
Destaca que o desprezo pelas leis e o deboche compulsivo em condutas arrogantes e infantilizadas são costumes diante do medo que grassa em ambiente de pandemia. As semelhanças com o nosso país ficarão límpidas à medida que se aprofunde o estudo. Em tempos de tantas divergências entre ciência & tecnologia e achismo, ela, uma cientista social, declara que a ciência não produz certezas inquestionáveis, porquanto avança por meio do desenvolvimento de teses que usam o método de tentativa e erro.
Sete séculos passados, o papa Clemente VI chegou a proibir procissões ao perceber que eram um grande foco de contágio. Observação também é ciência. A peste atacava todos os povos, ricos ou pobres, de aldeias lindeiras ou distantes. As aglomerações provocadas para deleite político ou narcisismo social são exemplos contemporâneos a serem rejeitados. O filósofo alemão Walter Benjamin reflexionou: “Cada avanço civilizatório é ladeado pela barbárie”. Espera-se que a barbárie imaginada por Benjamin não seja a de uma liderança perversa, ao menos aqui em nosso país.
Durante o ápice da peste negra, que brotou no século 14 e estendeu-se por três séculos, as autoridades cuidavam da vigilância nos embarcadouros para evitar a entrada de navios infectados. Estabeleciam uma quarentena obrigatória (os venezianos perceberam que a incubação da peste durava 37 dias). Aceitavam a criação de novos hospitais por beneméritos (a iniciativa privada já se mostrava capital). Na adolescência do século 21, parece-nos ainda imprescindíveis tais proteções e ações.
Os avanços alcançados da ciência contra o Sars-CoV-2, covid-19, ainda que tenhamos necessidade de confirmar a plena eficácia a médio prazo e, acima de tudo, que possamos alcançar todas as partes do mundo, são os únicos instrumentos aptos a aliviar as incertezas do enfrentamento. A pesquisadora assegura que historiadores do futuro encontrarão campo fértil de interesses acadêmicos ao estudarem as reações emocionais ao medo, à incerteza, à perda de confiança, até mesmo ao pânico durante essa pandemia.
Reações que levam à irracionalidade e a crenças rígidas como o negacionismo, a rejeição das vacinas e a busca de bodes expiatórios. Reações que suscitam odiosos ataques muitas vezes apócrifos ao indivíduo em vandalismos amorais. São ares que respiramos aqui em terras de Santa Cruz.
Na ânsia de inocentarem-se, os prováveis culpados buscam socializar as responsabilidades pela decadente gestão ao apontar o indicador para o comportamento de outrem. Mas, como Hannah Arendt observou: “se todos são culpados, ninguém o é”. Todavia, ela também esclareceu que a culpa é específica e não geral, tem nome e sobrenome (costumo dizer, tem CPF). Carmén Iglesias esclarece que essas atitudes descritas ao longo de sua entrevista são características mapeadas em outras experiências pandêmicas. Ou seja, se os gestores esboçassem a mínima pretensão de enfrentar o desafio, bastava estudar um tiquinho o passado. Está tudo lá em suas entranhas já evisceradas. A persistir a insensatez e a arrogância de pensar e agir na pretensa onisciência, serão execrados nos tempos vindouros.
Paz e Bem!
General de Divisão do Exército
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