Bares locais mantêm as portas abertas por décadas e presenciam diferentes momentos históricos da cidade
Por JÚLIA PESSÔA
Tradicionais cenários de comemorações e belos encontros, bem como de desilusões e agruras, os bares certamente ocupam um lugar cativo na memória afetiva e cultural do brasileiro. Em Juiz de Fora, muitos deles, que mantêm as portas abertas e os balcões em plena atividade há mais de 40 anos, possuem, entre cervejas, tradições e petiscos, um papel importante como testemunhas e agentes do curso da história local. A Tribuna percorreu alguns deles, puxou a cadeira e rendeu-se ao bom papo de quem acompanha o passar do tempo por trás do balcão.
Com 84 anos de existência, o Pró-Copão, famoso por sua culinária de boteco, é o ancião da cidade, além de ser um dos mais antigos do país. Fundado em 1929 por italianos, o coroa enxutíssimo nunca fechou as portas, mudou de endereço ou trocou de nome. A alcunha do bar, aliás, faz menção a "Procópio", como se fosse seu aumentativo, alusão ao bairro onde está instalado desde o primeiro dia de funcionamento, o Mariano Procópio. Da porta do boteco, seus administradores acompanharam o lento deslocamento das atividades econômicas e sociais do bairro para o Centro de Juiz de Fora.
Em 1955, o casal de portugueses Antônio e Albertina Alves adquiriu o estabelecimento e, desde então, ele permanece na família, sendo agora administrado pelo filho Sérgio, com o apoio da esposa Maria Cristina e a filha Bárbara, que já se garante como timoneira do negócio na próxima geração.
Criado entre o balcão e as mesas, Sérgio viveu diferentes momentos históricos no Pró-Copão, a ditadura militar e diversas trocas monetárias. "No tempo da inflação galopante, o valor da cerveja chegava a variar do início da noite para a hora de fechar a conta, então muita gente já pagava um determinado número de garrafas para garantir o preço da hora em que chegou."
No Centro, o quase sessentão Bar do Futrica, aberto em 1957 por aquele que lhe empresta o apelido, Geraldo Vieira, tem como marca registrada a pizza grega, deliciosa massa folhada coberta por queijo do reino ralado, invenção de seu fundador. Negócio de família, o bar, situado na Galeria Hallack, também é tradicional ponto de encontro de amantes do futebol -inclusive de botão, batizando um time da modalidade -, mantendo um famoso bolão do Campeonato Brasileiro.
Para Sidney, filho de Futrica, que toca a casa ao lado do irmão Ademir, uma das lembranças históricas mais marcantes foi o dia da instauração do golpe militar em 1964. "Tivemos que fechar as portas com os fregueses aqui dentro e permanecemos por horas no bar, até que os militares liberassem a saída das pessoas" recorda ele, contando também as tradições do próprio estabelecimento, como as mesas, que levam o nome dos netos dele e de Ademir, em um total de seis. "E para por aí!", brinca Rondinely, filho de Sidney.
Um pé na tradição e outro na inovação
Exalando nostalgia, o Boi na Curva, no Eldorado, com 47 anos de existência, une o charme peculiar dos botequins de bairro aos sinais dos tempos. Aberto como mercearia em 1966 por Lair Rocha, o estabelecimento foi dando prioridade às atividades como bar, com a queda na procura pelas pequenas vendas devido ao boom dos supermercados a partir dos anos 80.
Da época de Seu Lair, permanecem na casa um baleiro em pleno funcionamento e algumas dezenas de garrafas de colecionador, que decoram até hoje a casa, nomeada Boi na Curva por causa da iguaria à base de mandioca e carne de boi, sucesso absoluto junto a outros caldos, carros-chefes do cardápio.
Entre os panelões borbulhantes que liberam os mais diversos aromas, o filho do fundador, Cristiam, fala sobre as transformações no entorno do bar desde a época em que, pequenino, não alcançava o balcão, até os dias de hoje, em que comanda os negócios da casa. "Antes, o bar marcava o fim da rua e o início de uma trilha de terra que dava em fazendas. O Eldorado foi crescendo aqui em volta e hoje é completamente integrado ao resto da cidade, que foi estabelecendo elos com os bairros pouco a pouco", observa ele, que incorporou novidades ao negócio, como a fabricação de sua premiada cerveja artesanal.
O Bar do Nonô, no Bom Pastor, fundado em 1956, também testemunhou todo o crescimento do bairro, impulsionado pela fábrica de cobertores São Vicente, que deu à casa seu primeiro nome, Mercearia São Vicente. "Na época, o comércio era cheio destas casas que eram tudo: bar, açougue, padaria, e ajudei muito meu pai a fazer entregas aqui na região, ainda criança", conta Onofre de Souza, filho de Nonô.
Deste tempo, mantêm-se uma engenhoca para pegar artigos em prateleiras altas, útil até hoje, e uma antiga caixa registradora, ainda na memória de clientes como Vittorio Caruso, de 77 anos, que bate ponto na casa "todos os dias, graças a Deus", como ele mesmo diz entre um gole de cerveja e uma garfada na farta porção de joelho de porco.
Memória de gerações
Verdadeiro historiador da boemia local, o carismático Abílio Moreira, proprietário do tradicional bar que carrega seu nome há 44 anos, conta que presenciou o nascimento de várias famílias desde que abriu as portas na Rua Fonseca Hermes. "Daqui do balcão, vi casais que começavam a sair juntos aqui, iniciaram um namoro e hoje voltam casados, com filhos e algumas vezes netos", relata ele, enquanto não descuida de suas panelas. "Senão perco o ponto", justifica.
Modesto, Abílio diz que nunca soube cozinhar muito, mas é desmentido pelas premiações que decoram as paredes do bar. Entre os quitutes mais famosos, está o fígado com jiló, combinação que é marca registrada da casa e conquista mesmo os que torcem o nariz para os ingredientes, preparados na peculiar cozinha "ao vivo e em cores", como Abílio costuma dizer. "É bom, porque os clientes vêm a preparação do prato, e eu não perco a conversa nem o bochicho".
Incorporado ao cenário de uma das regiões da cidade, o singular Bar du Léo - que, a propósito, não se chamava Leonardo - é indissociável à imagem das mesinhas dispostas na Praça Ministrinho, no Jardim Glória, cercada de árvores e, em alguns dias, pequenos micos, que transitam entre os clientes. "Passamos a usar a praça há 38 anos, e existem vários clientes que dizem que sugeriram a ideia a meu pai, mas nunca vamos saber quem foi, de fato", diverte-se Rita de Cássia Vicente, filha de Avelino Vicente, apelidado de Léo desde a infância e falecido há seis anos.
Com 50 anos completos este ano, o Bar du Léo é hoje mantido pelas filhas do fundador e por sua esposa, rainha absoluta da cozinha desde a abertura da casa, que ainda vende artigos de mercearia. "Quando abrimos, também entregávamos pão de casa em casa, desde a Rua São Sebastião, no Centro, até aqui no Jardim Glória, além de cerca de 300 litros de leite por dia. O São Pedro, onde moro hoje, mal existia, e hoje é independente, e nós mudamos também: hoje o forte é o bar. Vi tudo isso trabalhando aqui ", conta Dona Lecy, matriarca da família, em plena atividade aos 77 anos.
Cliente assíduo do Bar Sparta, fundado em 1955, José Luiz Britto Bastos lembra-se de sua infância, no tempo em que o bonde ainda passava na porta da casa, pela Rua São Mateus. "Os picolés ainda eram mantidos em salmoura, a rua era de paralelepípedos, mas certas coisas não mudam, como os deliciosos petiscos da estufa", brinca. Administrado pela família de Edson de Almeida desde 1984, o bar também imprimiu seu nome no esporte local. "Temos mais de 200 troféus conquistados por torneios de futebol disputados pelo Sparta Futebol Clube", conta Edson, polindo orgulhosamente o brasão do time.
Amizades atemporais
Com um álbum de fotografias à mão, Valdir Vilela relembra vários momentos do Bar do Chinelato, fundado em 1960, que carrega o sobrenome de seu sogro e do qual está à frente há dez anos. Hoje funcionando no São Pedro, o Chinelato rodou por diversos pontos da cidade, mas nunca suspendeu as atividades, assim como manteve a tradição de sempre carregar os clientes, ou melhor, amigos, para os novos endereços.
Entre as várias histórias que o fundador contava, o genro diverte-se com uma em especial. "Tinha um garçom que usava dentadura, e o Chinelato, muito cuidadoso, não deixava ele se aproximar da cozinha, com medo de que ela caísse nas panelas", diz Valdir, que sempre trabalha usando chapéu e diverte a clientela com mensagens irreverentes escritas em plaquinhas.
Remetendo ao aprazível ambiente caseiro, a decoração do bar inclui um artefato que chama atenção: a bengala de um frequentador diário do bar, doada pela família depois de seu falecimento. A memória de Chinelato também continua viva na cozinha, hoje comandada por sua filha Tânia, que mantém guardado a sete chaves o segredo de um molho criado pelo pai há mais de 40 anos. "Herdei dele o gosto pela cozinha e a vontade de experimentar, inventar receitas novas."
De poucas palavras, Vicente de Paula Fontes, "vulgo Bigode", como diz o próprio, empresta o apelido a um dos bares mais famosos da cidade, o Bar do Bigode e Xororó, aberto em 1965, responsável pelo burburinho diário na Rua Oswaldo Aranha e famoso pelo torresmo- de ponta, tira ou à pururuca.
"No início, eu ia para a cozinha, hoje fico olhando as coisas aqui, conta ele, sem abrir mão da cervejinha com os clientes de longa data, num espaço "só para VIPs" atrás do balcão. Na parede, uma placa com as inscrições "Cantinho do Waltencyr C. Erhardt" marca a história da própria casa, eternizando a ruptura dos limites entre clientela e aqueles atrás do balcão: "Foi o meu primeiro cliente, um amigo do coração."
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