Fato surgiu após proposta de magistrada,
encampada por patrão, de unir casais do mesmo sexo em cerimônia coletiva
nos festejos farroupilha
Cidade debate a possibilidade de matrimônio homossexual em cerimônia coletiva
Foto:
Júlio Cordeiro / Agencia RBS
Um dos bastiões do tradicionalismo, capaz de mobilizar o recorde de 6
mil cavaleiros no desfile da Semana Farroupilha, Santana do Livramento
está em rebuliço com a sugestão de que casamentos gays tenham por palco
um Centro de Tradições Gaúchas (CTG). Para os que aprovam a ideia, seria
uma demonstração de respeito à igualdade – um dos lemas da bandeira do
Estado. Já os contrários se rebelam, afirmando que tentam profanar um
reduto da virilidade rio-grandense.
Quem propôs celebrar a união
entre pessoas no mesmo sexo num CTG foi ninguém menos que a diretora do
Foro de Livramento, juíza Carine Labres. Há sete meses no município, a
magistrada foi além: entende que a melhor data para o casamento é 13 de
setembro, justo quando se iniciam os festejos da Semana Farroupilha e as
homenagens a figuras como o general Bento Gonçalves da Silva, o símbolo
maior da valentia gaúcha.
Ao ser acolhido pelo patrão do CTG
Sentinela do Planalto, o advogado e vereador Gilbert Gisler, o Xepa, o
plano da juíza Carine instalou a polêmica na cidade. E reações
indignadas. O presidente da Associação Tradicionalista de Livramento,
Rui Ferreira Rodrigues, ressalva que não é contra o enlace entre gays,
mas desde que ocorra em local apropriado.
– Que se casem onde quiserem, cada um vive do jeito que quer, mas um CTG não é o lugar para isso – destaca.
Na
terça-feira da semana passada, Rodrigues convocou os representantes das
40 entidades tradicionalistas de Livramento para uma reunião de
urgência. Compareceram os líderes de 38 delas, todos repudiando o
casamento gay em CTG. Também deliberaram que o CTG Sentinela do Planalto
é ilegítimo, por ter sido desligado do Movimento Tradicionalista Gaúcho
(MTG) devido à falta de pagamento das anuidades.
– Essa casa (CTG Sentinela do Planalto) não representa o seleto grupo do tradicionalismo – diz Rodrigues, em tom severo.
Vereador quer dar exemplo
Coordenador
da 18ª Região do MTG, Rodrigues informa que Gilbert Gisler, o patrão
dissidente, age com “fins políticos” ao abraçar a união gay. Tão logo
saiu da audiência com a juíza Carine, Gisler deu declarações a uma
emissora de rádio anunciando a ideia. Para Rodrigues, o desafeto também
prejudica a imagem da cidade, onde despontam estátuas ao passado de
bravuras.
Atual presidente da Câmara de Vereadores, Gisler refuta
as insinuações de que busca votos e fama. Diz que ofereceu o salão do
CTG depois de assistir a um casamento coletivo – de 30 pares
heterossexuais e um de lésbicas –, patrocinado pela Justiça de
Livramento, em março passado.
– Vi a alegria das pessoas. Então, disse que o nosso CTG estava à disposição da juíza – conta.
Músico
nativista e “criado no lombo de um cavalo”, como define suas origens,
Gisler acha que Livramento pode dar um exemplo de tolerância ao permitir
a união gay num CTG. Discorda das críticas de que o projeto poderia
macular o histórico de intrepidez dos santanenses, desde as guerras de
fronteira contra os espanhóis até as revoluções civis de 1893 e 1923
entre maragatos (rebeldes do lenço vermelho) e chimangos (legalistas do
lenço branco).
– Não se pode esquecer os heróis do passado. Longe disso, mas uma cidade precisa se adequar ao seu tempo – observa.
O
CTG Sentinela do Planalto realmente foi desligado do MTG por dívidas.
Gisler diz que não pretende pagar as anuidades, porque nunca recebeu
nenhum retorno positivo do Movimento. Reclama que o CTG precisou ser
reconstruído, depois de sofrer arrombamento e vandalismo, sem que o MTG
se solidarizasse.
A posição de Gisler não é unânime dentro do
próprio CTG. Ex-patrão do Sentinela do Planalto e atual integrante, o
uruguaio Pedro Curbelo prefere que os gays se casem em outro local. Ele
reproduz um verso de Martín Fierro (publicado em 1872), do escritor
argentino Jose Hernández, que morou por uns tempos em Livramento, para
expor o que pensa:
– Cada leitão em sua teta e com o seu jeito de mamar.
Episódios de intolerância
O capitão gay
No
desfile farroupilha de 2002, na Capital, o advogado pelotense José
Antonio Cattaneo, que se apresentava como o Capitão Gay, foi surrado a
golpes de rebenque (pequeno chicote) por meia dúzia de gaúchos. Ao
desfraldar a bandeira do arco-íris – símbolo do Movimento Gay –, foi
perseguido a cavalo e expulso da avenida (foto). Dias antes, sofrera
ameaças ao tentar frequentar o Acampamento Farroupilha. Na ocasião, um
gaudério mais exaltado puxou a adaga contra Cattaneo, mas foi contido. O
Capitão Gay era candidato a deputado estadual.
O gaúcho de brinco
Em
março de 2005, o professor Ademir de Mello de Camargo foi expulso de um
baile no CTG Lalau Miranda, em Passo Fundo, por usar brinco. O patrão
da entidade, Ari Ferrão, justificou que normas internas vetam o adereço
em homens. Camargo registrou queixa na Polícia, argumentando que fora
arrastado do salão por seguranças. O episódio gerou polêmica entre
tradicionalistas e folcloristas. Na época, o historiador e antropólogo
uruguaio Fernando Assunção lembrou que alguns gaúchos do século 18
usavam brinco, e como símbolo de masculinidade. Eram marinheiros
europeus que abandonavam o navio, no Rio da Prata, seduzidos pela vida
de aventuras no pampa.
Entrevista: Carine Labres, juíza de Direito
"A ideia é garantir os direitos da minoria"
Desde
dezembro atuando em Santana do Livramento, com quatro anos de
magistratura, Carine Labres causou alvoroço ao propor a realização de
casamento gay num Centro de Tradições Gaúchas (CTG) e durante a Semana
Farroupilha. Nascida em Lajeado, no Vale do Rio Taquari, entende que um
magistrado deve contribuir para a sociedade, não se limitando às lides
processuais no gabinete. Atual diretora do Foro municipal, Carine deu
entrevista a ZH. Confira os principais trechos.
Por que a senhora decidiu propor um casamento coletivo de gays e heteros em CTG?O
Judiciário organiza casamentos coletivos para pessoas com renda de até
três salários mínimos, que desejam participar. São dois eventos no ano. O
primeiro foi em março, no salão do júri. Pensei que o próximo poderia
ser realizado em setembro, dentro de um CTG, numa homenagem à Semana
Farroupilha, reunindo casais hétero e homossexuais.
A sua decisão provocou a reação de tradicionalistas.
A
autoridade judicial deve dar voz às minorias. A Resolução 175, de maio
de 2013, do Supremo Tribunal Federal (STF), diz que é vedada a recusa da
celebração do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo.
Mas por que num CTG?
A
carta de princípios do tradicionalismo diz que a função de um CTG é
justamente valorizar a família. Sem discriminações. Se não aceitarem,
gostaria que me respondessem por que um casal do mesmo sexo não pode se
casar dentro de um CTG. Se a resposta for convincente, sem filtros, vou
aceitar. A ideia é garantir os direitos da minoria. Homossexualismo não é
opção, é algo personalíssimo. Não se escolhe passar pela humilhação que
perdura. A sociedade precisa trabalhar com a tolerância e o respeito.
Patrões de CTGs contrários à ideia dizem que um magistrado não pode obrigar...
Realmente,
não. Mas queremos chamar a sociedade para a discussão do assunto. Os
CTGs não podem se furtar ao que está acontecendo. Até o momento, um CTG
aceitou a proposta.
Há algum casal gay inscrito?
Quatro
demonstraram interesse. Três de mulheres e um de homens. Mas eles estão
pensando a respeito, avaliando a exposição pública de se casarem num
CTG, amadurecendo a questão. Não se definiram. A princípio, a cerimônia
deve ocorrer em 13 de setembro, uma semana antes do desfile.
A
senhora está preocupada com possíveis incidentes devido à posição
contrária de tradicionalistas mais ferrenhos? Já ocorreram no passado.
Não.
E não queremos que eventos como o do Capitão Gay (veja ao lado) se
repitam. O que desejamos são relações respeitosas e de tolerância.
Também pensamos atuar em outras áreas, como a dos crimes de agressões
contra mulheres e de abusos contra crianças. Mexer com o conservadorismo
é mexer com a sociedade.
http://zh.clicrbs.com.br/rs/vida-e-estilo/noticia/2014/07/revolucao-na-fronteira-o-polemico-casamento-gay-em-um-ctg-de-livramento-4557168.html