Quando fala de si, você começa por “eu”. Carlos Guedes não. Ao longo de seus 63 anos, usou e continua a usar o “nós”. Ele vive no plural, mas tem sido obrigado a conjugar o singular. Desde que o irmão Júlio se foi, em 21 de dezembro passado, ele sente as dores de ser só um. “Nascemos praticamente grudados. Saí na frente e, em quatro minutos, chegou ele. Tudo o que um sentia, o outro captava. Éramos cúmplices. Nossa vida era uma só. Nosso dinheiro era um só e fazíamos tudo juntos”, emociona-se. “Ainda estou muito chocado com a morte do Júlio. Meu coração foi partido ao meio. Estou em busca de me encontrar”, completa. “Júlio era meu irmão, meu amigo, meu amante, meu tudo.”
Gêmeos univitelinos, Carlos e Júlio foram educados desde muito pequenos para manterem-se unidos, sempre um ao lado do outro, numa formatação que toda a cidade fortaleceu. Os irmãos reconhecidos pelo carnaval também eram vistos como um só. Sozinho em uma grande casa no Bairro Bandeirantes, Carlos acostuma-se com os novos dias. Nascidos em Juiz de Fora, no dia 19 de fevereiro (que ele diz, nunca mais será comemorado), moraram no Bairro Francisco Bernardino, depois em São Mateus, em mais de cinco ruas, depois no Mariano Procópio, até se fixarem, ao lado dos quatro irmãos, na casa onde se espalham fotos dos dois. Também estudaram em mais de cinco colégios e desfilaram por mais de cinco escolas. A vida de ambos sempre foi superlativa, tanto que chegaram, também juntos, aos 162 quilos. Aos 23 perderam os cabelos e com 40 anos começaram a engordar. “Fomos acomodando. A genética da família é essa. Pensávamos: Se você tem quem te ama, tem casa, tem tudo, para quê a vaidade? Nunca tivemos complexo com isso. Nos achávamos bonitos”, conta.
Corpo e alma
Desde a infância, quando os gêmeos brincavam num velocípede para dois lugares e cantavam no coral da Igreja São Mateus, tudo foi compartilhado, até o sofá na sala que dividiam quando Júlio enfartou e se despediu. “Sempre estudávamos juntos e até os 12 anos andávamos iguaiszinhos. Crescemos e começamos a vestir diferente, mas, de vez em quando, ainda aparecíamos com roupas iguais. O guarda-roupa sempre foi o mesmo. Minha mãe falava que um era a alma e outro o corpo”, lembra ele da matriarca que morreu no mesmo dezembro, de 2013, e teve as gestações de outras três duplas de gêmeos interrompidas. Em 1968, aos 18, os dois conheceram a folia. “As Domésticas de Luxo começaram a ensaiar no Colégio Bicalho. Tínhamos um amigo que nos chamou para o ensaio e acabamos convidados para ser destaque do bloco. Não paramos mais”, recorda-se Carlos.
Sovaco de cobra
Como tudo na vida dos dois, a paixão pelo carnaval também era explicada pela genética. “Nosso pai era da época do bloco Sovaco de Cobra, quando os homens se vestiam de bailarina, com réstias de cebolas nas tranças, e saíam pela Rua Halfeld”, pontua. Por décadas, os irmãos desfilaram e trabalharam para diferentes escolas de samba da cidade e da região. “Nos anos 1970, éramos ‘vendidos’ como jogador de futebol. Por oito anos saímos na Juventude Imperial e ganhávamos da linha para a fantasia à água mineral durante o desfile. O Zé Kodak (mais que um amigo, um irmão), depois, nos ‘comprou’ para o Turunas, e eu ganhei a fantasia e um dinheiro que ele dizia que era ‘o do picolé para a praia depois dos desfiles’. Em seguida, fomos para o Ladeira desfilar no enredo ‘Fábulas fabulosas de um rio fabuloso’, onde éramos a pororoca e não a pururuca, vestidos de rumbeiras, com maiô e as pernas de fora”, diverte-se ele, que depois foi para o Grizzu.
Eterna dinastia
Na década de 1990, a Prefeitura abriu um concurso para Rei Momo, e Júlio acabou sendo nomeado para a função, que abraçou por 12 anos, e Carlos deu sequência por outros dois. Funcionário da Funalfa, Júlio participava de todos os preparativos. E Carlos também. Instrutor do Senac durante anos, ele acompanhava o irmão no trabalho. A instituição contratava um e ganhava o outro. Apesar de terem se formado contadores, os irmãos sempre viveram às voltas com festas. “Fomos uma imagem que todo mundo queria ver. E nós também queríamos ver e abraçar todos. Éramos dois, iguaizinhos, fazendo os mesmos gestos, de cabrocha, baiana, anjo, centurião, dama antiga, rumbeira, sempre em cima do salto. Éramos lindos”, brinca Carlos. Da folia, ficou marcado pelos “amores que valeram a pena, e a importância que tínhamos”. Dos próximos, não sabe. Ano passado, com Júlio já debilitado, foi sozinho ao bloco Pagodão e diz ter se sentido deslocado. “Não sei se vou, se devo ir este ano. Já pensei em fazer uma roupa de rei e ir para a rua, mas a verdadeira homenagem a ele é tudo o que vivemos, o amor que dei. A dinastia continua. E tenho certeza de que será a cada dia mais exaltada.”
http://www.tribunademinas.com.br/outras-ideias-com-carlos-guedes/
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