Uma curta caminhada entre as prateleiras da Biblioteca do Museu de Arte Murilo Mendes (Mamm) basta para que sentidos e pensamentos sejam inundados por vidas inteiras. As mãos que um dia apalparam as páginas, o olhar sobre cada título, o colo sereno de longas leituras. Pela sala climatizada, ronda o cotidiano antigo de livros e documentos guardados por figuras ilustres. O material, numa sutil confissão, também revela muito de seus colecionadores, hoje "vizinhos" no espaço mantido pela UFJF. Os acervos "Guima", do artista plástico João Guimarães Vieira; "Arcuri", do professor e arquiteto Arthur Arcuri; "Alencar", dos escritores Gilberto e Cosette de Alencar; "Poliedro", com publicações variadas relevantes para a cidade; e "Murilo Mendes", que reúne parte da biblioteca pessoal do poeta, estão à disposição de especialistas e interessados no Mamm. A instituição também organiza atualmente as heranças literárias de Cleonice Rainho e, em uma sala separada, as de Dormevilly Nóbrega.
Segundo o pró-reitor de Cultura José Alberto Pinho Neves, além de resguardar a memória cultural juiz-forana, a iniciativa possibilita a discussão do saber por meio da pesquisa documental. "Há uma tendência na crítica literária atual de seguir, por meio de documentos originais, a construção da própria literatura", explica, valorizando a trajetória e os acervos dos intelectuais locais. Pinho Neves adianta que um catálogo referente à biblioteca de Murilo será lançado este ano. A publicação, física e virtual, irá apresentar todos os títulos disponíveis, ressaltando a presença ou não de marginálias e dedicatórias, além de incluir alguns ensaios sobre a coleção. A intenção, complementa o pró-reitor, é estender o projeto a outras prateleiras - todas ligadas à arte e à literatura, assim como o autor de "A idade do serrote".
De acordo com Lucilha Magalhães, responsável pelo atendimento ao pesquisador, o espaço é visitado principalmente por estudantes de graduação e pós-graduação. "Curiosos também costumam recorrer às obras, para entender a história dos colecionadores." Conforme observa Pinho Neves, a frequência depende dos processos investigativos da cidade. "É algo que vai se construindo com o tempo. Se aumentam as possibilidades de pesquisas, sobe o número de pesquisadores", analisa, informando que está em negociação a aquisição de cópias de todas as críticas publicadas sobre Murilo Mendes de 1957 a 2003. "Trata-se de um trabalho de uma professora da Unicamp."
Cada acervo possui traços particulares, assim como seus proprietários. Exercício interessante é imaginar o primeiro título, impulsionador do conjunto. Difícil encontrar a resposta, por exemplo, entre os mais de 2.800 livros da biblioteca "Guima", doada pela esposa do artista, em 1997. Temas como arte, literatura, filosofia e fotografia se enfileiram nas estantes, contando com etiquetas "asa-delta" preparadas pelo Laboratório de Conservação e Restauro de Papel da instituição. "São marcações que não danificam as obras e podem ser trocadas", comenta Lucilha Magalhães. Cada acervo possui uma cor específica para identificação.
Guima, que era ainda jornalista e professor de história da arte, nasceu em um distrito de Valença (RJ), mas se transferiu para Juiz de Fora na década de 1940 para estudar pintura. Sua trajetória se reflete nas publicações que reuniu, muitas raras, como o "Dicionário da arquitetura brasileira". Guima também fala de si de outras maneiras. Em sua coleção, aparece ilustrando a capa de "Os anos 40", de Rachel Jardim. Nas relíquias de Cleonice Rainho, surge assinando um desenho em bico de pena. No móvel de ferro um pouco à frente, Guima se mostra nas cartas enviadas para Cosette de Alencar, que divide a estante com seu pai, Gilberto de Alencar.
Resguardo familiar
A literatura francesa se destaca na biblioteca de Gilberto e Cosette. De acordo com Ailcto Mendes Novaes, bibliotecário do Mamm, todo intelectual do passado lia as obras no original, já que não havia tantas traduções como hoje. De épocas diferentes, pai e filha demonstram peculiaridades no gosto literário. "Por meio de algumas dedicatórias, conseguimos identificar o dono do livro", assinala Lucilha Magalhães.
A professora e doutora Moema Rodrigues Brandão Mendes - pesquisadora do acervo da família Alencar, doado em 2009 - conta que, com a morte de Gilberto e Cosette, o filho do escritor, Fernando de Alencar, e a esposa ordenaram todo o material, "reunindo os manuscritos e acondicionando-os em pacotes distintos de papel pardo, amarrados com barbantes, devidamente etiquetados na parte externa". Todo esse cuidado, que não contou com técnicas especiais de preservação, pode ser conferido no Mamm. Cerca de três mil volumes, além de correspondências, diários e manuscritos de obras publicadas e inéditas, estão nas prateleiras, grande parte já disponível para consulta (que, em todos os casos, só ocorre no espaço). "Estamos processando o restante", afirma Lucilha, informando sobre uma doutoranda da Universidade Federal Fluminense (UFF) que estuda somente os diários de Cosette.
Recebida em 2010, a biblioteca da escritora Cleonice Rainho, hoje com 97 anos, já foi higienizada e começa a ser organizada. Com cerca de dois mil itens, a coleção, doada em vida, ressalta uma mulher que atuou ativamente na imprensa e nos movimentos culturais regionais e lançou cerca de 30 livros. Artur Arcuri, falecido há dois anos, também ofereceu parte de seu acervo ao Mamm por desejo próprio, em 2000. Segundo a jornalista Alice Arcuri, filha de Artur, o gesto do professor e arquiteto revela um sujeito consciente de seu "estar no mundo". "Ele era muito envolvido com a UFJF." Entre os 1.297 títulos e 2.010 exemplares - a maioria relacionada às artes -, estão revistas editadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), do qual Arcuri foi diretor em São João del Rei e Tiradentes. Filho de Pantaleone Arcuri, o arquiteto projetou o Campus Universitário da UFJF.
Há ainda a biblioteca "Poliedro", com 973 itens, aberta para receber obras raras e primeiras edições de Murilo Mendes, além de estudos sobre o poeta e publicações de outros autores da cidade. Algumas pérolas das prateleiras são "Poemas", de 1930, primeiro livro de Murilo, bancado pelo pai, e "História do Brasil", de 1932, com capa de Di Cavalcanti. "Esse último nunca foi reeditado", explica Lucilha Magalhães. A "Poliedro" também recebe documentos como correspondências trocadas pelo poeta, já que seu acervo é fechado e contém cerca de três mil títulos de literatura estrangeira. "Os livros de literatura portuguesa e brasileira foram doados à Universidade de Roma, onde ele deu aula", conta Ailcto Novaes. Trabalhando debruçada nas páginas, Lucilha afirma topar, inclusive, com fantasmas de Murilo. "Ele, por exemplo, não gostava muito da língua inglesa."
Acervo de Dormevilly Nóbrega começa a ser ordenado após limpeza
Após longo processo de limpeza e higienização, a coleção do jornalista Dormevilly Nóbrega, que ocupa uma sala no primeiro andar do Museu de Arte Murilo Mendes (Mamm), está em fase de organização. Segundo o bibliotecário responsável, Rafael Cestaro, trata-se de um trabalho demorado. "Imagino que leve cerca de dois anos e meio para o público ter acesso." Cestaro observa que, ao contrário do que muitos pensam, o tratamento de um acervo não se restringe à ordenação dos livros na estante. Exige registro, catalogação e classificação. "Estamos na primeira etapa", comenta.
De acordo com Ailcto Mendes Novaes, responsável pela biblioteca do Mamm, as heranças de Dormevilly, compradas em 2010, trouxeram com elas o espectro intelectual do jornalista e a "clientela" que já frequentava sua casa. "Ele está no inconsciente juiz-forano", completa, definindo as fontes primárias como hegemônicas e fundamentais.
Cestaro aponta a importância do material, focado na história da região. Entre os destaques, estão edições dos periódicos "O Pharol" e "O Lince". "São itens fabulosos para os pesquisadores." Chamam também a atenção "Poesias", lançado por Oscar da Gama em 1902, e "Novo dicionário da língua portuguesa", de 1922. "Quando a publicação tem data inferior a 1930, temos que olhar com mais cuidado", diz Cestaro, acrescentando que muitas riquezas ainda devem aparecer ao longo do tempo. Telas, recortes de jornais e revistas, cartas e manuscritos de crônicas também foram encontrados nas caixas. Como atesta Novaes, Dormevilly possuía uma lógica pessoal de organização e procurava se aprofundar no assunto por meio de obras técnicas de biblioteconomia, presentes no acervo.
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