O título desse artigo é também o título de um samba que não aconteceu. Explico.
Era carnaval de 1978. O tradicional Bloco do Beco, da mineira Juiz de Fora, havia preparado o tema de seu carnaval à partir da mudança da delegacia de polícia, que sairia do centro da cidade e iria para o bairro Santa Terezinha, onde até hoje se encontra. Com esse mote, os foliões, entre eles o grande sambista Armando Fernandes Aguiar, Mamão para os juizforanos, prepararam fantasias de presidiários e um samba no qual debochavam dos policiais, "e até do dinheiro que eles recebiam do jogo do bicho", como disse Mamão (1).
O enredo: "Saudade do casarão". Tal casarão, exemplar de art-decó, era a sede da delegacia de polícia, onde funcionou até os anos 1970. O bem foi tombado pelo município em 2000, através do decreto 6910, no qual foram considerados "o valor histórico e cultural que envolve o bem"; "sua integração ao conjunto arquitetônico da área central"; "que a edificação conserva o gabarito original e a implantação tradicional de alinhamento da fachada junto a via pública"; "a fachada composta segundo o repertório formal do art-déco, inteiramente dominada pela verticalidade das pilastras contínuas que alcançam toda a altura, desde o embasamento à base da platibanda"; "a presença de detalhes que acentuam as linhas verticais, o eixo de simetria, a modulação e os motivos geométricos"; "ser o imóvel testemunho e registro dos caminhos trilhados pela segurança pública de nossa cidade" (2).
Destaco a última justificativa. A simples menção a "caminhos trilhados pela segurança pública" oculta o papel que a delegacia teve na repressão que a ditadura exerceu aos "subversivos", conforme podemos deduzir da leitura do Relatório da Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora (3).
Mas, volto ao samba. Os policiais, adeptos da repressão como instrumento hodierno, também naqueles sombrios tempos de ditadura civil-militar, ameaçaram o boicote ao bloco. Isso na melhor das hipóteses. Mamão, que retornava do Rio de Janeiro onde se encontrara com a saudosa Clara Nunes – que havia gravado no disco "Clara Nunes" o samba de Mamão "Tristeza, pé no chão", em 1971 – sugeriu aos confrades o samba "Coração Leviano", de Paulinho da Viola (Álbum " Paulinho da Viola", 1968), que Clara preparava para gravar em disco que sairia em 1980 ("Brasil Mestiço") no lugar de "Saudade do Casarão". Já que o único compromisso do Bloco era "com a alegria", nas palavras do sambista mineiro (4), o Bloco desfilou seus trajes de prisão ao som dos versos de Paulinho, ao invés de provocar os policiais e o delegado. Em verdade, delataram, nas entrelinhas, as intenções primeiras do Bloco, que tramou "em segredo teus planos".
É um tanto utópico falar de Carnaval em, plena pandemia, em plena distopia que nos impede a sonhar com os dias de folia. Mas homenageemos os vivos! Viva Mamão!!! E viva o Bloco do Beco, que completará 50 anos nesta década.
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