Depois de quase duas horas de erudição jurídica enfadonha, que poderia ter resumido em uma ou duas frases, o ministro Celso de Mello cumpriu o ritual aguardado desde a semana passada: aceitou e desempatou a dúvida sobre disporem os condenados do mensalão direito a um novo julgamento. Numa palavra, as primeiras sentenças que levaram meses para ser exaradas poderão, a partir de ontem, ser revistas e modificadas. Obviamente que em processos capazes de arrastar-se pelo próximo ano inteiro, ensejando a que os condenados pelo maior escândalo nacional dos últimos tempos permaneçam em liberdade, tanto os beneficiados pelos embargos infringentes quanto os demais.
Confirma-se o mote popular de que Justiça, no Brasil, é aplicada implacavelmente sobre os pobres. Os que integram as elites vão empurrando suas sentenças com a barriga, através de advogados remunerados a peso de ouro. A lição a tirar da sessão de ontem do Supremo Tribunal Federal é de que há condenações e condenações. Umas para valer, como no caso da mãe que furtou uma lata de leite em pó num supermercado e foi mandada para atrás das grades. Outras, de que desviar milhões, comprar votos parlamentares e sustentar estruturas corrompidas dá prestígio, mas não dá cadeia. No máximo, notícia para os jornais.
Conclui-se estarem preparando recursos até para o Juízo Final, isto é, o Capeta logo ficará desempregado. Sempre existirá um embargo em condições de adiar o fogo eterno para quantos já foram condenados.
A partir de agora, desfaz-se a derradeira esperança de recuperação de nossas instituições. O Legislativo faz muito que perdeu sua credibilidade. Do Executivo, nem é preciso falar. Restava o Judiciário. Não resta mais. Seguiu no caminho da vaca, ou seja, acaba de tomar o rumo do brejo.
O triste nessa história de horror foi o comportamento da mais alta corte nacional de Justiça. Primeiro, seguiram todos para o lanche, em meio aos trabalhos. Chá, café com leite, bolinhos e pastéis, como se nada de inusitado estivesse acontecendo. Nenhuma explosão de protesto. Depois de encerrado o voto de Celso de Mello, apenas discussões sobre a definição dos novos relatores que examinarão cada um dos embargos a ser apresentados. Nada de gestos de indignação, sequer contestações da parte dos que se opuseram a tamanha farsa. Os onze ministros despiram suas togas e foram para casa jantar, indiferentes à frustração que o tribunal deixou na alma nacional. Cumpriram seu dever, devem estar pensando, ao abrigar-se numa duvidosa letra da confusa lei sobre a qual divergiam até pouco. Esqueceram que fazem parte da Humanidade, que integram uma sociedade muito superior aos seus alfarrábios jurídicos e às suas vetustas citações históricas. Já estavam, mas mais ficaram excluídos do Brasil real, da comunidade que os beneficiou, elevando-os ao que seria o mais alto patamar da representatividade social. Tomaram o caminho das profundezas, de onde não deveriam ter saído por conta da ilusão agora desfeita de poderem apontar caminhos para a redenção nacional.
Não se debite apenas a Celso de Mello essa débâcle de conseqüências ainda ignoradas. O brilho de sua erudição apagou-se como um palito de fósforo. Para que tanto conhecimento, se faltou-lhe sabedoria?
Felizes estavam os mensaleiros, celebrando a conquista de mais uma moratória. De ano em ano sem parar na cadeia, acabarão contribuindo para erigir uma nova estátua à Justiça. Aquela que não será modelada com a espada e a balança nas mãos, além da venda nos olhos. Pelo contrário, aparecerá pelada, com faunos a seu redor…
Jornalista Carlos Chagas
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