domingo, 25 de agosto de 2013

Médicos em Juiz de Fora investigados por descumprir horários

25 de Agosto de 2013 - 07:00

Outros profissionais da Saúde também estão na mira do Ministério Público, que pede ressarcimento aos trabalhadores pelos prejuízos ao Erário

Por GUILHERME ARÊAS

O descumprimento da carga horária de trabalho e possíveis irregularidades na acumulação de vínculos públicos de profissionais do Sistema Único de Saúde (SUS) estão na mira do Ministério Público Estadual (MPE). Mais de cem médicos de Juiz de Fora estão respondendo a inquéritos civis públicos abertos pela Promotoria de Defesa da Saúde. A suspeita é de que alguns deles estariam trabalhando até menos da metade do tempo que deveriam cumprir em hospitais, unidades básicas e postos de saúde do SUS. Praticada em maior ou menor escala por parte dos servidores, a transgressão de horários é considerada um problema histórico e é agravada pela situação de desassistência que o usuário do SUS enfrenta hoje no município. Com a ação do Ministério Público, os profissionais que comprovadamente trabalharam menos do que o previsto estão sendo chamados para assinar termos de ajustamento de conduta (TAC) para repor seus serviços em horários complementares ou até mesmo devolver, em espécie, os prejuízos que causaram ao Erário. As investigações se estendem a todos os servidores públicos da saúde que ocupam cargos de nível superior, como fisioterapeutas, dentistas e psicólogos, em cerca de 20 municípios da região. Em breve, as ações serão levadas a todas as 94 cidades da macrorregião Sudeste do estado.
Os casos seguem em segredo de Justiça, mas a reportagem conversou com um médico que responde a um desses inquéritos. "Todo mundo sabe que os médicos nunca cumpriram horário. Sempre foi assim. É uma questão cultural. Mas não é dessa forma, dando canetada de uma só vez, que o promotor vai mudar essa realidade", diz o profissional, que preferiu não ter o nome revelado. "O problema da falta de médicos na cidade, que a própria Tribuna abordou em uma reportagem recente, vai muito além daquela discussão (dos baixos salários, da falta de plano de carreira e das condições precárias das unidades de saúde). Existe um medo enorme, entre os médicos, de responder a processos. Diante desse medo, vários se aposentaram ou pediram demissão. Foram 'expulsos' do serviço público", completa o servidor. Segundo ele, colegas que também respondem a inquéritos civis foram informados pelo MPE que deveriam devolver até R$ 120 mil ao Erário pelas horas não cumpridas. Informações apuradas pela Tribuna apontam que o valor do reembolso pode ser ainda maior e chegar a R$ 200 mil.
O trabalho da Promotoria de Defesa de Saúde começou há dois anos, com o cruzamento de dados de profissionais de cerca de 20 cidades da região, e visa a investigar servidores que se enquadram em três situações: os que acumulam três ou mais vínculos públicos, o que é proibido pela Constituição - só são permitidos no máximo dois para profissionais da saúde; os que acumulam dois vínculos públicos e cinco ou mais privados; e os que acumulam dois vínculos públicos com jornada semanal superior a 40 horas. As duas últimas situações não são proibidas por lei, "mas, em tese, demonstrariam incompatibilidade nos horários", conforme o coordenador regional das Promotorias de Justiça de Defesa da Saúde da Macrorregião Sanitária Sudeste, Rodrigo Ferreira de Barros.

Comissão
A atuação do MPE segue uma deliberação do Conselho Nacional de Procuradores Gerais. Em Minas, o trabalho é realizado por uma comissão formada por seis promotores de Justiça. Dos profissionais de saúde investigados, alguns conseguiram provar que efetivamente cumpriram os horários ou a promotoria não teve elementos suficientes para detectar irregularidades em suas cargas horárias e vínculos públicos.


Central de Marcação seria conivente

Segundo as investigações do Ministério Público, a própria Central de Marcação de Consultas da Prefeitura seria conivente com o descumprimento de horários por parte dos médicos. Documentos obtidos pelo promotor junto ao setor no final do ano passado apontam que a central agendava consultas por um período de apenas duas horas por dia para cada médico especialista. O correto, segundo o promotor Rodrigo de Barros, era que cada profissional atendesse por duas horas e meia diárias. "Se você contabilizar esses 30 minutos de cada profissional, por dia de trabalho, desde 2011, é uma coisa muito significativa." Diante disso, a Promotoria de Defesa da Saúde formalizou uma recomendação para que a atual gestão municipal regularizasse a situação, o que já teria sido feito. "Essas medidas nada mais são do que adequações a determinações legais. Elas vão trazer reflexos bastante significativos na assistência ao usuário, principalmente nas consultas especializadas."

Ponto biométrico
Apontado como uma das alternativas para frear as irregularidades no cumprimento da jornada de trabalho, o ponto biométrico ainda não está em funcionamento pleno no município. Os equipamentos já estão instalados desde 2011, mas, de acordo com o secretário de Saúde, José Laerte Barbosa, o software ainda não permite fazer a checagem do ponto com a folha de pagamento do servidor. "Se ele trabalhou horas a mais ou a menos, essa informação não vai ser cruzada com a folha de pagamento. O sistema também não emite um comprovante do horário de entrada e saída do trabalhador." Conforme o titular da pasta, a empresa responsável pela implantação do ponto biométrico na cidade já foi acionada para fazer as adequações.
Sobre o descumprimento dos horários por parte dos médicos, José Laerte comenta que a categoria sempre trabalhou por demanda. "Se ele tinha que atender a 16 consultas em um dia e conseguiu atender, em tese, já cumpriu sua obrigação, independentemente da carga horária. Mas os órgãos de fiscalização não entendem mais dessa forma, o que eu acho até equivocado, pois, no meu ponto de vista, o que interessa é que o atendimento seja bem feito."

Readequação de agenda dos municipalizados

Além de cobrar ressarcimento ou reposição aos servidores que não cumpriram sua carga horária, o Ministério Público Estadual (MPE) questiona a constitucionalidade de um dos artigos de uma lei municipal que estende a médicos da rede estadual e federal de Juiz de Fora benefícios dados a trabalhadores contratados pelo município. A lei 12.325 flexibiliza a jornada de trabalho dos profissionais e permite que, das 20 horas de trabalho semanais, sete horas e meia por semana sejam usadas para aprimoramento permanente, como atividades de formação, capacitação, especialização e atualização. Na prática, a lei criada pela Prefeitura e aprovada pelos vereadores em 2011 permite que os médicos estejam em seus postos de trabalho por apenas 12 horas e meia por semana. A concessão vale para a atenção primária e secundária, exceto para profissionais da urgência e emergência e do programa Estratégia Saúde da Família. Na visão do MPE, a lei é inconstitucional em seu artigo nono, que garante o benefício aos mais de cem servidores municipalizados, ou seja, àqueles com vínculo com o Estado ou com a União, mas que são cedidos ao Município.
Por mais que Juiz de Fora tenha gestão plena da saúde desde 2003, o promotor Rodrigo Ferreira de Barros entende que "uma lei municipal não pode flexibilizar o cumprimento da jornada de trabalho de servidores vinculados a outros entes federados". O Ministério Público Federal (MPF) foi acionado e encaminhou o caso ao Tribunal de Contas da União (TCU), que recentemente confirmou o entendimento da promotoria local. Diante disso, a Secretaria de Saúde foi informada e tem dois meses para regularizar a situação.
O secretário de Saúde, José Laerte Barbosa, informou que todos os chefes de departamento já foram informados da decisão para que possam readequar a agenda dos médicos municipalizados, de forma que eles passem a cumprir as 20 horas semanais. "Isso vai causar um transtorno, mas o Município não tem outra alternativa a não ser acatar."
O presidente da Comissão de Saúde da Câmara Municipal, vereador Antônio Aguiar (PMDB), endossa a reivindicação dos médicos. "Entendemos que, se o Município tem a gestão plena da saúde, os profissionais que estão cedidos devem estar submetidos às normas que o Município opera. Porque, se não, vamos ter gente trabalhando no mesmo local, fazendo a mesma função, mas submetidos a condições diferentes. Mas fizemos a sugestão de que essa dúvida fosse sanada pelo sindicato com a Procuradoria-Geral do Município."
O promotor Rodrigo de Barros acrescenta que, neste caso, os servidores também devem repor as horas não trabalhadas desde que a lei entrou em vigor, em meados de 2011. "Os profissionais estão de boa-fé, mas, neste caso, também haverá a necessidade da complementação da jornada não atendida. Essas sete horas e meia semanais, desde agosto de 2011, terão que ser complementadas", sugere o promotor Rodrigo de Barros. Sobre a necessidade de reposição por parte dos servidores municipalizados, o secretário José Laerte Barbosa disse que desconhecia a medida.

Sindicato reage a 'excessos' da Promotoria

O pente-fino da Promotoria de Defesa de Saúde tem provocado uma dura reação por parte do Sindicato dos Médicos, que protesta contra uma possível interferência excessiva do Ministério Público na gestão local, principalmente em questões trabalhistas e de recursos humanos. Os sindicalistas alertam inclusive para os riscos de desassistência ao usuário, uma vez que muitos médicos estariam abandonando o serviço público por conta das pressões. "De forma geral, as atuações do Ministério Público não estão contribuindo para a melhoria da saúde no município. Até entendo o rigor e a austeridade do promotor, mas a falta de flexibilidade pode ser mais deletéria do que útil", diz o presidente do sindicato, Gilson Salomão.
O promotor Rodrigo Ferreira de Barros reconhece que o rigor das ações pode gerar uma fuga de profissionais do SUS e o aumento da desassistência que hoje já acontece. Porém, ele acredita no trabalho desenvolvido como forma de sanar um problema histórico. "Estamos em um momento de regularização, que vai mexer com uma situação consolidada há décadas", diz. "Isso vai dar uma segurança ao gestor e aos próprios profissionais que estiverem em seus postos de trabalho cumprindo sua jornada de forma correta. E isso vai se traduzir em melhor qualidade no atendimento à população que depende do SUS. Em contrapartida, vai demandar uma atuação diferenciada da Secretaria de Saúde, com a realização de concursos e reavaliação dos planos de cargos e salários, de forma a tornar o serviço público mais atrativo."
Os possíveis excessos da promotoria levaram o sindicato e o Conselho Regional de Medicina (CRM) a agendar uma reunião na última terça-feira. No encontro, os médicos que atuam pelo SUS decidiram solicitar uma audiência pública na Câmara Municipal para discutir o assunto. Também vão acionar os departamentos jurídicos das entidades para verificar que medidas legais podem ser adotadas. Um abaixo-assinado e o acionamento da Corregedoria-Geral do Ministério Público não foram descartados.
"Acho que o Ministério Púbico tem que fazer isso (investigar o cumprimento de horário de trabalho dos servidores), mas também zelar para que as condições de saúde para o usuário e de trabalho para o profissional sejam as melhores possíveis. Existe um leque de problemas e não só uma questão pontual de fiscalizar o cumprimento de horários", diz Gilson Salomão.
"Se o cidadão tem que esperar anos por uma consulta especializada, dias por um atendimento emergencial em um pronto socorro, porque não existe um profissional lá dentro, ou se pessoas morrem por falta de atendimento, isso é sim caso de atuação do Ministério Público, porque são direitos violados flagrantemente", argumenta o promotor Rodrigo de Barros.
 Queda de braço
A queda de braço entre o sindicato e o MP se intensificou após uma determinação judicial que entra em vigor no próximo dia 1º de setembro. Ela estabelece, entre outras coisas, que os usuários do SUS sejam comunicados, em até 30 dias, da data da consulta em especialidades médicas. Os médicos temem que a marcação de consultas de forma tão antecipada possa coincidir com as férias de alguns profissionais, além de impedir a participação deles em congressos e outros eventos da categoria.
"Muito nos espanta, enquanto órgão de controle de fiscalização do cumprimento das leis, que o sindicato questione o direito do cidadão de ter essa garantia", diz o promotor. "Mas esperamos que isso não tenha passado de um mal-entendido nesse momento", minimiza. 

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