domingo, 19 de agosto de 2012

Tráfico não foi o único inimigo durante ocupações do Exército nas favelas


Rio -  Por pouco a atuação do Exército nos complexos do Alemão e da Penha não sofreu um baque desastroso para uma missão de ‘guerra’ durante os primeiros meses de ocupação.
Dois surtos, um de hepatite A e outro de dengue, deixaram parte da tropa doente e foi preciso repensar a logística de higiene no alojamento e na rotina nas comunidades.
A história faz parte de bastidores que pela primeira vez são contados sobre a ocupação dos militares nos conjuntos de favelas considerados o entreposto do tráfico no Rio.
Foto: Ernesto Carriço / Agência O Dia
Exército entra nos complexos | Foto: Ernesto Carriço / Agência O Dia
Por quatro meses, o assessor de imprensa do Comando Militar do Leste (CML), coronel Carlos Alberto de Lima, 62 anos, fez pesquisa, que reuniu relatos, leitura de correspondências trocadas entre governo do Estado e o Ministério da Defesa no momento de crise — quando a cidade vivia o inferno de ataques incendiários de traficantes — , e esmiuçou relatórios da inteligência da corporação.
O resultado é o livro ‘Os 583 dias da pacificação dos Complexos da Penha e do Alemão’, de 164 páginas. A obra reproduz os ofícios que vieram de Brasília e os que tinham os pedidos do governador Sérgio Cabral para a ajuda no Rio.
E traz uma cronologia que mostra que o cerco ao Alemão se fez 12 horas após o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva autorizar a participação do Exército.
As estratégias dos militares, como fazer parceria com lideranças religiosas das comunidades para conseguir persuadir os eventos patrocinados por eles, aparecem no livro como ações que deram certo.
A percepção deles era tão minuciosa que traçaram o perfil dos moradores: enquanto no Alemão, as pessoas eram mais receptivas, dispostas a colaborar; os da Penha permaneciam retraídos, eram ríspidos e, em alguns casos, tinham admiração pelos bandidos.
- Detalhes
Ministro Jobim
No processo de elaboração dos documentos da Força de Pacificação, o então ministro Nelson Jobim sentou várias vezes na frente do computador para fazer, ele mesmo, modificações e sugestões necessárias, em virtude da urgência e pela sua experiência na área jurídica como ex-ministro do Superior Tribunal Militar.
Confusão em visita
Durante a visita do Príncipe Harry, membro da realeza britânica, os bandidos organizaram ações (tiros, garrafadas, pauladas, turbas, etc...) em seis pontos na Vila Cruzeiro. As confusões ocorreram num intervalo de 50 minutos.
Esse tipo de ocorrência no horário em questão não havia sido registrada durante a operação.
Lâmpadas do tráfico
Os ‘olheiros’ do tráfico faziam revezamento de 12 horas. Os militares conseguiram identificar gestos manuais que eles faziam para avisar sobre a presença da tropa em becos e vielas, por exemplo.
A iluminação pública também foi usada para dar o alerta aos marginais. Eles piscavam luzes ou apagavam. Conseguiam fazer isso porque havia ligação clandestina no sistema.
Malhação e religão
Para que a tropa ficasse motivada, foi montada academia de musculação na base, que ficou na antiga fábrica da Coca-Cola, para que pudessem malhar antes e depois do patrulhamento.
Outra estratégia foi oferecer equipe de assistência religiosa (com todos os segmentos) para conforto espiritual. Foi paga indenização para os militares que participaram da ocupação. O valor correspondia a 2% do soldo por dia trabalhado.
Óbito por leptospirose
Em 7 de fevereiro de 2011, soldado, do 8º Grupo de Artilharia de Campanha Paraquedista (8° GAC Pqdt), morreu vítima de leptospirose. A principal suspeita é de que ele tenha sido contaminado nas favelas.
Tráfico e milícia
Levantamento dos militares estimou que haja cerca de 500 traficantes. Com a saída de vários bandidos da região, foram verificados indícios de disputa pelo domínio, por parte de milícias, de regiões antes ocupadas pelo tráfico.
Foto: Alexandre Vieira / Agência O Dia
Coronel Carlos Alberto de Lima dedicou quatro meses à pesquisa | Foto: Alexandre Vieira / Agência O Dia
“Aquilo lá era totalmente insalubre”
Carlos Alberto de Lima Assessor de imprensa do CM


1– O que mais chamou a atenção do senhor?
— Foi o recebimento da ordem de cerco do Complexo do Alemão, no dia 26 de novembro de 2010. A Brigada Paraquedista, com a Força Tarefa, ocupou os entornos dos complexos da Penha e do Alemão em 12 horas, sem reconhecimento e sem preparo específico.

2.Quando começaram os ataques do tráfico, antes da tomada do Alemão, o Exército se precaveu com receio de ações contra a tropa. Como foi?
— Dia 20, começaram os ataques, incêndios a carros e ônibus e o CML tinha que tomar precauções. Um: ficar preparado para se fosse chamado. Dois: proteger os nossos quartéis e a tropa.

Como tínhamos preparação para os 5º Jogos Mundiais Militares, e havia muito deslocamento na Av. Brasil, onde estavam acontecendo os ataques, o CML deixou a Brigada Paraquedista e 9ª Brigada de Infantaria de prontidão. Alguns trechos da Av. Brasil foram mobiliados com tropa para proteger as viaturas e os militares.
Quando o governo invadiu a Vila Cruzeiro e viu que a coisa era mais séria do que esperado, aí se pensou: vamos invadir o Complexo do Alemão, o que não estava previsto. Então, pediu ajuda ao Exército.

3 - Em que situação, inicialmente, estava a base onde os militares ficaram alojados?
— Aquilo lá era totalmente insalubre. O próprio Exército começou a trabalhar com material de engenharia e depois o governo entrou para fazer a base fixa da pacificação.

4 - Quer dizer que havia baratas, ratos...?
— Pela narrativa da pesquisa tinha de tudo... Muito lixo... O início da operação era um cenário de guerra: não havia instalações fixas nem água no local, a cozinha era totalmente improvisada.

5 - O militar que morreu de leptospirose pode ter se contaminado lá?
— Muito provável, porque o óbito veio depois que ele estava atuando.

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