terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Associação do Cegos JF - Justiça afasta direção e nomeia interventor

Promotor Plínio Lacerda se reúne semanalmente com o interventor Heitor Pereira
Setor destinado a moradia dos cegos passa por reformas para maior conforto aos internos (Fernando Priamo/27-01-16)
Setor destinado a moradia dos cegos passa por reformas para maior conforto aos internos (Fernando Priamo/27-01-16)
Atual refeitório é quente e desconfortável. Mesas ficam próximas a varais (Fernando Priamo/27-01-16)
Atual refeitório é quente e desconfortável. Mesas ficam próximas a varais (Fernando Priamo/27-01-16)
A Fundação João Theodósio Araújo, conhecida como Associação dos Cegos, está sendo administrada pelo Poder Judiciário. A intervenção, solicitada pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais e autorizada pela 8ª Vara Cível, ocorre desde 10 de agosto do ano passado e tem por objetivo comprovar possíveis irregularidades de ordem contábil e sanar dificuldades administrativas. Ao mesmo tempo, condutas da gestão anterior são investigadas. A suspeita é de que, ao longo dos anos, tenham ocorrido desvios de valores e gestão equivocada, que resultou em descontrole nas prestações de contas e aumento do passivo trabalhista. De acordo com o promotor Plínio Lacerda, que acompanha o caso, todas as denúncias estão sendo comprovadas a fim de serem juntadas em um procedimento de investigação criminal. Atualmente as doações feitas são documentadas, e os recursos levantados são analisados pelo juiz Sérgio Murilo Pacelli. Desta forma, os voluntários podem continuar colaborando sem problemas. Segundo o interventor designado, o perito contábil Heitor José Pereira, de 2013 até hoje, o volume mensal de doações caiu cerca de 40%, o que deixa a entidade em dificuldade financeira. O valor da dívida, no entanto, não foi divulgado.
A Associação dos Cegos foi inaugurada há 76 anos e é considerada um hospital-dia. Além de prestar assistência a pessoas com deficiência visual, oferecendo cursos, acompanhamento médico e abrigando 33 deles, também fornece apoio à população: isso por meio de doações de colírios de alto custo e oferecimento de exames oftalmológicos, totalizando média de 1.500 atendimentos por mês, além de aproximadamente 80 cirurgias em igual período. De acordo com o interventor, manter todas estas atividades tem sido difícil. “Não matamos um leão por dia, matamos cinco. Atualmente nossa prioridade é regularizar a folha de pagamento dos mais de 70 funcionários, que recebiam constantemente com atrasos. Desde que assumi a entidade, em 10 de agosto, verifiquei que faltava gestão. Não havia um gerenciamento dos recursos de forma que pudesse propiciar vida saudável à fundação. Aí começou a surgir um empréstimo atrás do outro, chegando a um ponto insustentável.”
O promotor Plínio Lacerda explica que, por se tratar de uma associação, ela deve prestar contas anualmente ao Ministério Público sobre os investimentos que são feitos com as doações e os repasses do Poder Público. “A Associação dos Cegos, e ela não é a única, há muito tempo está com problemas de ordem contábil. Nos últimos anos, íamos pedindo para que ela se regularizasse, pois havia um déficit grande. No entanto, acreditávamos que, por envolver também repasses do SUS e outros órgãos, uma hora iria se regularizar. Mas chegou a um ponto que as contas não fechavam mais, sendo necessário solicitar a intervenção.”

Prédio
Além das dívidas, outras motivações foram denúncias de ex-funcionários e questões relacionadas ao prédio da Avenida dos Andradas. Isso porque, segundo Heitor, quando a associação se transformou em fundação, em 1991, não houve registro do imóvel. “Só que hoje, para resolver este problema, é preciso desatar outros nós. São barreiras burocráticas que estamos enfrentando. É o mesmo caso de imóveis que, ao longo dos anos, foram doados para a associação, mas não foram regularizados. Mas se falta dinheiro até para a folha de pagamento, como vamos regularizar estes registros? Hoje fazemos o saneamento administrativo e econômico para equilibrar as contas”, explicou Heitor. Ele acrescenta que uma das medidas é a de negociar diretamente com os credores de forma que os pagamentos sejam parcelados e feitos em longo prazo.
Intervenção
A previsão é que a administração do local pelo Poder Judiciário ocorra durante um ano. Quando todo o levantamento administrativo e contábil for concluído, e as contas colocadas em dia, poderá haver eleição para o cargo do novo presidente, conforme Heitor. Para isso, de acordo com o promotor, é preciso que as pessoas voltem a acreditar na instituição. “As doações podem ser feitas sem qualquer tipo de preocupação, porque hoje quem analisa as contas é o juiz. Está tudo documentado. É preciso dizer que tiveram irregularidades no passado que agora estão sendo resolvidas. E se houve problemas administrativos, estes estão sendo investigados pelo Ministério Público. A intervenção existiu para extinguir os erros e dar garantia a todos”, afirmou Plínio Lacerda.
Ao falar do futuro da instituição, Heitor é taxativo: “A associação dos Cegos não tem dono. É patrimõnio da cidade. Precisamos resgatar isso.”

Área destinada a cegos é reformada

A situação das 33 pessoas com deficiência visual que hoje vivem na entidade não é a mais confortável. O refeitório, por exemplo, está instalado sob telhados de estrutura metálica, que deixam o ambiente extremamente quente e abafado. Em alguns quartos, apesar de móveis novos, a estrutura é antiga e, em um banheiro visitado pela reportagem, a condição chega a ser insalubre. Este cenário, no entanto, deve ser alterado, pois estão em fase de conclusão as obras do terceiro andar, onde novas instalações são construídas. Quando o interventor Heitor José Pereira, designado pelo Poder Judiciário, assumiu a administração da entidade, ele verificou que as obras estavam paradas. Do recurso de R$ 100 mil, que chegaria por meio da União, em 2013, apenas R$ 10 mil haviam sido depositados, montante suficiente apenas para quebrar paredes. Os entulhos, que estavam jogados ao chão, desde aquela época, resultaram em 11 caminhões cheios. “Conseguimos que a verba chegasse e começamos a negociar com a empreiteira, que havia vencido a licitação, a retomada das obras. Com várias doações de materiais, foi possível manter o orçamento feito naquela época.”
Além do interventor, a Justiça designou um administrador auxiliar. Carlos Henrique Marques Correa está na associação nos dois turnos, diferente de Heitor, que vai ao local diariamente por um período. Segundo ele, não havia sequer assistentes sociais ou psicólogos para acompanhar a rotina dos internos, como os moradores são chamados. “Tem cego aqui com 30 anos que chegou aos 4 anos. São pessoas que, se colocarmos na rua, vão morrer de fome. Eles nos diziam que não tinham acesso à sala do administrador, por exemplo. Desde que chegamos, também implantamos outras ações, como um almoço mensal de aniversário. Estamos dando mais valor aos cegos, e isso, eles não tinham.” Além dos 33 moradores, cerca de cem participam das atividades diárias da instituição, como oficinas de mobilidade urbana, artesanato, braile e informática.
Extremos
Quem percorre os corredores da associação hoje se depara com dois extremos: as áreas destinadas aos atendimentos públicos são novas e climatizadas, diferente do observado na ala onde os internos ainda vivem. “No meu relatório, enviado ao juiz, disse que a Associação dos Cegos tinha perdido o foco, que eram os cegos, passando para o atendimento, que também é importante. Mas eu senti que eles foram colocados um pouco de lado”, disse Heitor. Perguntado sobre como os deficientes visuais lidavam com esta realidade, ele afirma que eles não sentiam isso, pois estavam acomodados com a situação.

‘Nunca houve roubo na associação’

O presidente afastado da Associação dos Cegos, Lucas Diniz Chaves, falou à Tribuna sobre a intervenção do Ministério Público (MP). Segundo ele, a medida foi sugestão dele para que houvesse análises dos balanços contábeis, que não eram mais aprovados pela Promotoria. De fato, a ata da reunião na Justiça, que culminou em seu afastamento, diz que os diretores, “visando a facilitar o trabalho realizado pelo Perito Judicial e, sobretudo, preservar e recuperar o patrimônio da fundação, sem que, com isso, possam causar qualquer embaraço à Justiça, de comum acordo e por livre e espontânea vontade, concordam em solicitar seu afastamento das funções exercidas na diretoria da fundação pelo prazo de um ano a contar desta data”. Também teriam se colocado “à disposição no sentido de auxiliar naquilo que for conveniente e oportuno para o administrador provisório e seu auxiliar”. “Estou na associação há mais de 30 anos, e era presidente desde 2003. Quando João Theodósio (antigo presidente) morreu, dei continuidade ao seu trabalho. Não sabia dos problemas e não mudei a entidade, nem os cargos. Quando percebi que havia problemas, eu terceirizei a contabilidade para um escritório de maior conhecimento. Só que não podíamos pegar a contabilidade anterior, rasgar e começar tudo novamente”, disse Lucas.
Neste momento, conforme Lucas, houve a sugestão ao juiz para que as correções fossem feitas. “A contadora anterior, involuntariamente, porque é uma pessoa honesta, cometeu algum equívoco. Todo ano fazíamos a prestação das contas, com auditoria oficial e mandávamos para o Ministério Público, que é obrigação das fundações. Esta contabilidade, que estava desde antes da minha gestão, não era aprovada por um ou outro problema. Nesta pressão, concluímos que seria melhor eles assumirem, fazerem os levantamentos, identificarem os defeitos e esclarecerem o que tiver que ser esclarecido. Tudo isso está escrito e assinado pelo juiz. Disse para ficarem à vontade e analisarem o que for preciso. Mas não houve roubo na associação, nunca houve.”
Ainda de acordo com o presidente afastado, a entidade, ainda em sua gestão, passava por dificuldades financeiras que se intensificaram por causa da situação econômica do país. As dívidas, segundo ele, são consequência de problemas de administrações anteriores. “Vem de trás. Íamos parcelando os débitos, mas são muitos juros e correções. Existem algumas dívidas grandes, e, mesmo assim, nunca fechamos as portas. Eu tenho 74 anos, e ninguém fez tanto pela associação como eu. Em minha gestão, tripliquei seu próprio patrimônio.” Lucas também garantiu que continua presidente da Associação dos Cegos e, por isso, é de seu interesse retornar às atividades após o prazo de intervenção. “Eu não fui demitido, estou afastado. Eu vou reassumir e posso até convocar nova eleição e ir embora, mas continuo presidente.”
Por fim, ele se mostrou preocupado com a publicação desta reportagem, reiterando que existem dificuldades de arrecadação das doações que podem vir a piorar. “Os doadores vão fugir da associação. Não tenho dúvidas que acontecerão problemas. Vão acabar fechando a entidade, que é importantíssima para Juiz de Fora e toda a região.”

Publicado originalmente em: Tribuna de Minas – Cidade

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