segunda-feira, 11 de novembro de 2013

POSSÍVEL CARTEL: Serviço de caçamba tem preço único em Juiz de Fora

10 de Novembro de 2013 - 07:00


Caçambeiros que não integram associação estariam impedidos de despejar entulhos em área alugada pela PJF

Por RENATA BRUM

Quem depende do serviço de descarte de material de construção em Juiz de Fora não tem alternativas a não ser pagar R$ 140 pelo aluguel das caçambas. Com isso, os juiz-foranos ficam reféns do preço único. Quem pratica preço mais baixo diz já ter sido cobrado pela associação em R$ 2 mil. Há pelo menos quatro meses, a Tribuna vem recebendo denúncias de formação de um suposto cartel, com cobrança de preço fixo por todas as mais de 20 empresas ligadas à Associação dos Transportadores de Resíduos da Construção Civil (Astrecc). Além disso, só conseguem descartar entulhos no bota-fora autorizado pela Prefeitura, na Cidade do Sol, na Zona Norte, caminhões que têm o selo da associação colado no vidro dianteiro. Para ter o selo, o interessado seria obrigado a pagar uma espécie de "luva" de R$ 10 mil para integrar a associação e uma taxa mensal de R$ 125 por placa de caminhão que descarregará no bota-fora. Quem não está em dia não descarrega, pois funcionários da associação que ficam no aterro, para fazer a triagem do material, impedem o despejo. O caminhoneiro que não quer participar ou não tem condições é obrigado a procurar outros locais, o que pode ser uma das explicações para os bota-foras irregulares pela cidade. O negócio movimenta cifras milionárias. A estimativa da Prefeitura é de que sejam produzidos cerca de 700 a mil toneladas diárias de resíduos, o que significa de 150 a 220 caçambas por dia. Pelo cálculo, são cerca de R$ 30.800/dia, o que, no fim do mês, resulta em quase R$ 1 milhão.
A Tribuna fez contato com mais de 20 empresas associadas. Em todas teve a mesma oferta: R$ 140 a caçamba, por três a cinco dias. Ao questionar o tabelamento de preço, as explicações apontam para um acerto entre os associados. "É R$ 140 por cinco dias. A associação determina o teto mínimo. Se a gente cobra menos, é multado. É tabelado." Outra atendente diz o mesmo: "O preço é R$140, pois é o mesmo bota-fora para todo mundo." Em outra, a justificativa é em relação aos gastos. "Não é que seja tabelado, temos uma associação e, como é um único bota-fora, a despesa é igual para todos, e o mínimo que fazemos é o valor de R$ 140." Outra firma foi questionada sobre a impossibilidade de pechincha, e a resposta foi imediata. "São R$ 140 por três dias", disse a funcionária. "Então não adianta pechinchar?", argumentou o cliente. "É tabelado. O preço é o mesmo, mas fica a seu critério, você tem todo direito de ligar para outras empresas. Somente com uma empresa foi possível negociar. "São R$ 140, por cinco dias. Mas liga para um celular que você fala com o dono." Pelo celular, a negociação foi mais fácil. Foram concedidos mais dias e prazo no cheque, mas o valor ficou em R$ 140.
Segundo o Ministério Público Federal, o que caracteriza o cartel é, principalmente, a combinação, o acordo entre concorrentes, assim como a prefixação de preços visando a eliminar a concorrência. Segundo a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico do Brasil, os cartéis provocam um sobrepreço estimado entre 10% e 20%. A prática é considerada crime contra a ordem econômica, punível com pena de dois a cinco anos de reclusão ou multa, nos termos da Lei nº. 8.137/90 e deve ser investigada pelas polícias e pelo Ministério Público.
O presidente da Associação dos Coletores de Resíduos da Construção Civil, José Maria Antônio Vieira, nega a formação de cartel e diz que o que há é um acordo para que as empresas sobrevivam. "Não é cartel. Cento e quarenta reais é o preço mínimo que conseguimos fazer, é praticamente R$ 70 cada viagem. Levo a caçamba vazia e depois vamos buscá-la cheia para deixá-la na Cidade do Sol. O preço é único para não termos que cobrar por bairro, por exemplo. Cobramos o mesmo valor de quem mora no Milho Branco e quem mora no Retiro. Temos muitos gastos com pneus, óleo e manutenção. E só conseguimos manter esse preço pois a Prefeitura ajuda, não só essa gestão, como a gestão passada também. Se tivéssemos que levar para Dias Tavares, seria muito mais caro." Sobre a "luva" de R$ 10 mil, José Maria diz que é uma espécie de 'joia', uma doação para que a associação se mantenha, mas que não é obrigatória. Sobre a taxa de R$ 125 por caminhão, explica que é destinada a gastos com os funcionários da triagem e com o caminhão-pipa que atua no bota-fora. Ele nega a multa para quem praticar preço diferente.
Ministério Público
Titular da Promotoria de Defesa do Consumidor, Plínio Lacerda disse que o tabelamento de preços pode indicar, sim, um possível cartel e que a situação merece ser investigada. "Vou instaurar um expediente para apurar, mas precisamos verificar o que é pertinente de cada área", adiantou Plínio.
O promotor Carlos Ari Brasil, da Promotoria de Defesa da Ordem Tributária e Econômica, explicou que precisa verificar se o caso legitima a ação do Ministério Público. "Muitas vezes, quando se fala em cartel, a questão está mais ligada à defesa do consumidor. Precisamos averiguar se estão atuando com respaldo de alguma legislação, qual a participação do Município nisso, mas ainda é prematuro me posicionar." O promotor do Meio Ambiente, José Célio Martins de Abreu, disse que só irá se posicionar após ter acesso ao conteúdo da matéria.
Secretário de Atividades Urbanas, Basileu Tavares ressaltou que não cabe ao Município a apuração de cartel, com tabelamento de preços, mas disse ter conhecimento da proibição de depósito no bota-fora para quem não contribui com a associação. "Caçambeiros já me procuraram reclamando que não conseguem despejar os resíduos no bota-fora, pois não participam da entidade. Questionei o presidente da associação e expliquei que qualquer um pode despejar os detritos no local alugado pela Prefeitura. A contrapartida da associação é separar o material. Desde que não associados levem só entulhos, e nada de lixo, podem usar. A partir da próxima semana, um funcionário será contratado pela Prefeitura para fiscalizar isso no bota-fora." 

Município arca com aluguel de bota-fora

Em Juiz de Fora, o Demlurb tem um serviço de recolhimento de bens inservíveis, mas não há a coleta de entulho de obras, a cargo das empresas privadas - algumas com caminhões com placas do Rio de Janeiro - que estão organizadas em uma associação que gerencia o bota-fora e dá destino aos resíduos.
"A associação determina o preço, pois todo mundo paga o mesmo bota-fora. A Prefeitura sabe, porque o bota-fora é autorizado", denuncia um caçambeiro. A Prefeitura, entretanto, informou que os empresários não pagam pelo local, e que é o Município quem arca com aluguel de R$ 6.190 mensais da área, que pertence à família Bellini, contrato previsto até 2015. Judith Bellini, filha do proprietário do terreno, confirma que a área de mais de 110 mil metros quadrados foi locada pelo Município, mas é a associação quem administra o espaço. "O terreno foi alugado para bota-fora pela Prefeitura, e não somos nós que controlamos nada, mas, às vezes, precisamos intervir para impedir a entrada de lixo. É a associação que gerencia, e eles têm até sido mais rígidos no material que entra, mas depois de brigarmos muito. Já teve caçambeiro me ameaçando, e tentaram inclusive jogar caminhão em cima de mim porque estava impedindo a entrada de lixo", contou.
A Tribuna esteve no bota-fora em três dias distintos e confirmou a organização dos caçambeiros e flagrou o depósito de todo tipo de material: lixo orgânico, gesso, latas de tinta, madeiras, rodas, entre os entulhos de obras, sem fiscalização da Prefeitura. Todos os caminhões vistos na área possuíam o selo da Astrecc do mês de outubro. Indagado, um dos recicladores, 24 anos, que disse ser funcionário da associação, confirmou: "Eles pagam para jogar aqui. Só jogam se for associado. Tem que ter o selo." Questionado sobre sua função, ele explicou: "Fazemos a triagem. A gente separa, coloca em uma caçamba, e o que dá para aproveitar é vendido pela associação."

Exemplo
Outros municípios já conseguiram desmantelar o esquema das caçambas. É o caso de Volta Redonda (RJ), onde havia participação de funcionários da prefeitura fluminense. Apesar de o município ter um disque-entulho, a comunidade não tinha acesso ao serviço, o que abriu margem para a exploração do aluguel de caçambas. Algumas empresas eram indicadas por funcionários municipais. Todas elas cobravam R$ 80 por três dias de uso. Após a denúncia da imprensa de Volta Redonda, o município ressuscitou o serviço e, agora, cobra R$ 18 para o recolhimento. Após o pagamento pela rede bancária, a Secretaria de Serviços Públicos libera as caçambas públicas. 

Responsabilidade pelos resíduos é de construtores

Há uma resolução de 2003, do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), número 307, que estabelece diretrizes, critérios e procedimentos para a gestão de resíduos da construção civil, e ela é clara ao tratar como responsáveis pelo destino dos resíduos, os seus geradores. Mas em Juiz de Fora, a responsabilidade tem sido depositada nas caçambas. "Os construtores e quem gera resíduos precisam entender que não termina na caçamba a sua responsabilidade. São eles que devem dar destinação final de forma adequada. A responsabilidade pelos resíduos é dos geradores, e os caçambeiros deveriam ser só transportadores. Mas em Juiz de Fora o papel está invertido. Eles extrapolaram a função e estão responsáveis pela destinação de entulhos. Cobram para isso, mas não o fazem da forma correta. No final, é a Prefeitura que tem que fazer, ou seja, é o cidadão que vai pagar", alerta Heber de Souza Lima, chefe do Departamento de Articulação e Integração das Políticas Setoriais da Secretaria de Planejamento e Gestão da PJF.
Segundo Heber, a solução seria concretizar o Plano Municipal de Gerenciamento dos Resíduos da Construção Civil. "O plano foi feito em 2010, em parceria com a UFJF, e foi adotado em outras cidades. Ele prevê todas as fases, desde gerenciamento, transporte, destinação e fiscalização. Os responsáveis pela construção, junto com o projeto da obra, terão que apresentar o plano sobre resíduos, o que será produzido, quanto e para onde será destinado. O que acontece no bota-fora já é proibido há quase dez anos. A Prefeitura permitiu o primeiro, o segundo. Agora, não pode haver o terceiro."
Presidente e vice-presidente do Sindicato das Indústrias da Construção Civil (Sinduscon) estão em viagem e não foram encontrados para conversar sobre o assunto. O diretor financeiro da entidade, José Maria Ribeiro Alvim, entretanto, disse que não houve denúncias sobre o suposto cartel nas últimas reuniões das comissões técnicas do Sinduscon, mas considera a situação extremamente grave. "É preciso abrir um inquérito e, com certeza, o Sinduscon será ouvido, mas o que posso dizer é que o preço de mercado fora daqui é mais alto e que, como as empresas têm o mesmo custo com distâncias, é normal que o preço seja semelhante." Alvim destacou que o aumento do rigor no gerenciamento de resíduos está sendo discutido e acompanhado pelo sindicato. 

Fiscalização precisa coibir descartes irregulares

De acordo com Heber de Souza Lima, da Prefeitura, um grupo de estudo multidisciplinar trabalha no Plano Municipal de Gerenciamento dos Resíduos da Construção Civil. A intenção inicial é dar um prazo para o encerramento deste bota-fora e um prazo intermediário para que o depósito só seja feito no aterro em Dias Tavares até que a usina de reciclagem seja criada. "O local correto é Dias Tavares até a usina ficar pronta. Sei que a distância é maior, que a caçamba poderia até subir, mas quem pagaria por isso seriam os geradores, que é quem tem a responsabilidade. Mas com isso é preciso ter uma campanha de divulgação, um acerto sobre o preço a ser cobrado pelo material despejado, e a fiscalização atuar para coibir os descartes irregulares."
O secretário de Atividades Urbanas, Basileu Tavares, que também trabalha para a concretização do plano, concorda: "Não é possível permitir um terceiro passivo ambiental. A saída é o plano de resíduos, em conjunto com uma nova lei para as caçambas." Ainda segundo Basileu, há formas eficientes de monitorar os despejos irregulares. "Os caminhões poderiam receber o GPS para identificar onde estão fazendo o descarte." Heber enfatiza: "Tem muito material nobre que poderia estar gerando solução para a cidade, e hoje traz prejuízos." Ele destaca que, além da usina, que seria terceirizada, nos moldes do aterro, é necessária a instalação de locais para a recepção de pequenos volumes de resíduos inertes.

Próximo do esgotamento
Em menos de um ano, mais da metade da cava na Cidade do Sol foi encoberta. A previsão era de depósito até 2015, mas a PJF trabalha com prazo médio de cinco meses para o esgotamento. "A área já havia sido degradada, pois há 30 anos foi um lixão. Chegou a haver despejo de material hospitalar. Temos tentado recuperar a área, atraindo pássaros, e o que está sendo feito próximo à pedreira é na tentativa de transformá-la para possível criação de parque ou loteamento", diz Judith Bellini, filha do dono do terreno.
A situação desagrada a comunidade do entorno. "Meus filhos e netos tiveram que sair de tanto problema respiratório. Treme tudo aqui, a televisão desliga sozinha de tanto caminhão que passa", desabafou a aposentada Conceição Januário, 53 anos. Segundo a Secretaria de Atividades Urbanas, já foram realizadas melhorias no entorno, como construção de meio-fio na rua de acesso e instalação de quebra-molas.

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