16 de novembro de 1994
Enfim, umpresidente que
deu certo
Um balanço da Presidência Itamar
e a busca de um veredicto sobre ela,
por trás do nevoeiro e do topete
e a busca de um veredicto sobre ela,
por trás do nevoeiro e do topete
Houve uma vez um presidente que no começo tinha uma namorada e procurava desesperadamente um ministro da Fazenda e no fim tinha um ministro da Fazenda e procurava desesperadamente uma namorada. É assim que Itamar Augusto Cautiero Franco, talvez o 28º presidente brasileiro, talvez o 39º, talvez o oitavo mineiro a ascender ao cargo, talvez o sétimo, talvez o primeiro baiano, será lembrado pela História. Ou não? Pode ser que seja lembrado de maneira mais formal e positiva. Assim:
Houve uma vez um presidente que, de início desacreditado, considerado provinciano e despreparado para o cargo, surpreendeu com uma administração honesta e competente e marcou o início da recuperação de um país castigado por uma série de administrações ineptas e corruptas. Sua realização máxima foi dar início à estabilização da economia. Graças ao bom termo a que conduziu o mandato, conseguiu eleger seu sucessor, propiciando ao país uma das mais tranqüilas mudanças de comando de sua História.
Dia 2 de outubro de 1992, sexta-feira, 10h25 da manhã. O presidente Fernando Collor de Mello acaba de ser notificado, no Palácio do Planalto, de que a Câmara dos Deputados lhe impusera o afastamento do cargo, para ser submetido a um processo de impeachment. A algumas poucas centenas de metros de distância, no anexo do Palácio, o movimento é intenso. No gabinete modesto, com divisórias de compensado, reservado ao vice-presidente, Itamar Franco é proclamado presidente - interino, por enquanto, mas ninguém duvida de que logo será presidente de pleno direito - e submerge à euforia de uma pequena multidão em que se misturam amigos de Juiz de Fora, senadores, futuros ministros e jornalistas. Um veterano sócio do clube juiz-forano, Mauro Durante, já advertira, semanas antes, ao observar que o movimento no gabinete do vice aumentava na medida em que se tornava mais real o impeachment de Collor: "Os urubus estão chegando". Agora, urubus, perigosas águias, pacíficas pombas, papagaios tagarelas e caladas corujas, sem esquecer os tucanos, comprimiam-se naquele pequeno espaço, em que encontravam um presidente tão falto de solenidade que nem preparara discurso para a ocasião. Diante da insistência dos presentes, acabou compondo uma curta declaração, em cujo fecho afirmava: "A nação pode estar certa de que não haverá corruptos neste governo". Na parede, velava o retrato oficial do presidente do Brasil - cabelo gomalinado, olhar confiante, faixa sobre o peito. O presidente Fernando Collor de Mello.
Dois anos e algum tempo depois, que Itamar Franco tivemos? Que espécie de presidente foi ele? Londres ganhou fama pelo fog, mas o nevoeiro na verdade atrapalha é o Brasil. Na hora de fazer um balanço, não se sabe nem que numeral ordinal aplicar ao presidente que ora encerra seu mandato. Ele pode ter sido qualquer coisa, entre o 28º e o 39º presidente brasileiro, dependendo do critério que se adote. Ranieri Mazzilli, que assumiu interinamente várias vezes na primeira metade dos anos 60, conta? Carlos Luz, que governou uma semana, em 1955, conta? E a Junta Militar conta? Entra com um ou com três presidentes? O Brasil não tem a sorte dos Estados Unidos, que podem dizer de maneira cabal que Bill Clinton é o 42º presidente. Por outro lado, se Carlos Luz conta, Itamar será o sétimo mineiro a chegar à Presidência. Se contam também os presidentes que morreram antes de assumir - caso de Tancredo Neves -, será o oitavo. Isso, naturalmente, na suposição de que seja lícito contar como mineiros os juiz-foranos nascidos num barco, ao largo do litoral da Bahia - caso de Itamar.
Seja o 28º ou o 39º presidente do Brasil, o sétimo ou o oitavo mineiro, como se definiria o próprio Itamar ao encerrar seu governo? Ele responde:
- Tenho o sentimento do dever cumprido. No nosso governo não foi possível atacar graves problemas do nosso país, como a retomada do desenvolvimento, a desigualdade e a má distribuição de renda, mas criamos condições para que o governo de Fernando Henrique Cardoso possa dedicar-se mais a fundo a esses problemas. Um governo eleito, com mandato inteiro pela frente, tem mais condições.
Estamos no 3º andar do Palácio do Planalto, no amplo gabinete do presidente da República. Itamar Franco recebe o enviado de VEJA onde recebe sempre os visitantes: no conjunto de sofá e poltronas de couro que fica numa das extremidades da sala. O presidente senta-se na poltrona, o visitante no sofá, diagonalmente. Atrás de Itamar largas janelas oferecem uma bucólica vista de gramados, árvores e, ao fundo, o Lago Norte. Quando Itamar chegou, costumava-se manter as persianas fechadas. Ele mandou abri-las, depois de ter feito aplicar às janelas vidros que impedem que, à luz do dia, o gabinete seja visto de fora. O diálogo prossegue:
- O crescimento de certa forma foi retomado...
- Sim, mas o social não pode ser subproduto do crescimento. Eu outro dia fiz um prefácio para um livro editado pelo Senado, sobre Alberto Pasqualini, e ali encontrei uma frase: "...levar os bens da civilização e da cultura a todos". Não conseguimos levar os bens da civilização e da cultura a todos. Mas acho que avançamos. Não fizemos má figura, para um governo que tinha ministros pífios. Um desses ministros pífios foi eleito presidente da República.
Nos fundos do gabinete há outra sala, menor - um gabinete íntimo, como dizem os palacianos. Nos tempos de Collor, havia ali uma cama. Agora há uma mesa, com um computador. Na parede, um quadro com uma foto de Fernando Pessoa e o poema D. Duarte, Rei de Portugal:
Meu dever fez-me, como Deus ao mundo.
A regra de ser Rei almou meu ser.
Em dia e letra escrupuloso e fundo.
Firme em minha tristeza, tal vivi.
Cumpri contra o destino o meu dever.
Inutilmente? Não, porque o cumpri.
Outra pergunta ao presidente: "Na Presidência pode-se fazer mais ou menos do que o senhor imaginava?"
- Nosso período foi atípico. Houve até quem temesse que não chegasse ao fim. Houve momentos assustadores. O senador Simon um dia me ligou, no período da CPI da Comissão do Orçamento, dizendo que havia 100 envolvidos...
- O senhor temeu algum dia que não chegasse ao fim?
- Eu não. Mas foi uma Presidência sofrida. O Plano Real não foi gerado de um dia para o outro. Houve mais de um ano de estudos e discussões.
- O que o senhor deixou de fazer de mais importante?
- As coisas são diferentes aqui do mirante da Presidência. Há problemas que você se sente incapaz de resolver. Eu encontrei um país desmoronado, um povo sem auto-estima, um país considerado lá fora em decadência, sem rumo. A Copa do Mundo recuperou nossa auto-estima, o governo começou a mostrar que tinha soluções...
"Presidência sofrida", Alberto Pasqualini, "ministros pífios". O presidente vai deixando pistas que ajudam a decifrar o que lhe perpassa a mente, como quem larga pedras para marcar um caminho. Retornaremos a esses pontos. Lembremos antes que o nevoeiro continua denso. Quanto às namoradas do presidente, prevalece a mesma dificuldade que com a conta dos ocupantes do cargo. Aquela loura com quem ficou de mãos dadas no Salão do Automóvel conta?
Ministros da Fazenda pode-se dizer com certeza que foram seis - Gustavo Krause, Paulo Haddad, Eliseu Resende, Fernando Henrique Cardoso, Rubens Ricupero e Ciro Gomes. Ou não? Alguns sugeririam abater esse número para dois. No início, Itamar Franco era seu próprio ministro da Fazenda, a atrapalhar os outros, os que formalmente ocupavam esse cargo, ou sendo atrapalhado por eles, conforme a perspectiva que se adote. Até que achou Fernando Henrique Cardoso. Esse foi um governo com duas nítidas etapas - antes e depois de Fernando Henrique na Fazenda. Ricupero e Ciro Gomes, que se seguiram, podem ser considerados outras encarnações do próprio FHC, cujo espírito continuou pairando por cima, além de representado embaixo pela equipe e pelo plano.
Daí a afirmação com que se iniciaram estas linhas: Itamar Franco é um presidente que começou com uma namorada - Lisle Lucena - e sem ministro da Fazenda e terminou com um ministro da Fazenda - Fernando Henrique Cardoso - e sem namorada. Mas isso é pouco, como conclusão. Procuremos mais.
A difícil arte de ser Itamar
Um temperamento complicado, um
homem de sorte, honesto, atrapalhado:
a trajetória do presidente
Um dia, ao sair de uma negociação com Itamar Franco no Hotel Del Rey, em Belo Horizonte, Tancredo Neves comentou com um assessor: "Esse Itamar é difícil". A Tancredo atribui-se a frase: "Itamar guarda os rancores na geladeira". Dura foi a vida do doutor Tancredo nas mãos de Itamar. Quando, personalidade dominante do então MDB em Minas Gerais, resolveu convidar Itamar, então prefeito de Juiz de Fora - estamos em 1974 -, para candidato do partido a senador, Itamar disse que não iria a Belo Horizonte. Tancredo, se quisesse, que fosse a Juiz de Fora. Os dois acabaram formalizando o acordo a meio caminho, em Barbacena.
O mesmo problema de quem vai ao encontro de quem repetiu-se com Leonel Brizola, em 1989, quando, antes de Fernando Collor, Brizola teve a idéia de convidá-lo para seu vice, na eleição presidencial daquele ano. Itamar não iria ao Rio de Janeiro, Brizola que fosse a Brasília. Maurício Corrêa, então senador pelo PDT e que viria a ser ministro da Justiça de Itamar, fazia a intermediação entre ambos e exasperava-se. Tancredo Neves, depois do episódio de 1974, continuaria a viver com Itamar um relacionamento tão cheio de sustos, curvas abruptas, difíceis subidas e descidas vertiginosas quanto uma montanha-russa. Em 1982 estava certo que um, Tancredo, seria candidato a governador e o outro, Itamar, a senador, mas houve tensões entre ambos até o momento mesmo da convenção. Eleitos os dois, Itamar julgou-se desprestigiado na formação do secretariado de Tancredo e não pôs mais os pés no Palácio da Liberdade. Mais um pouco e, Tancredo candidato a presidente, na eleição pelo Colégio Eleitoral, Itamar engaja-se no movimento Só Diretas, considerando que participar do sistema indireto seria coonestar as regras do regime militar. Não há dúvida: esse Itamar é difícil.
Em seu livro Política, Arte de Minas, o jornalista Carmo Chagas afirma que as três frases mais usadas para definir Itamar Franco são:
• Ele é temperamental.
• Ele tem estrela.
• Ele é honesto.
Neste capítulo, alinharemos várias histórias de Itamar, em diferentes períodos de sua vida. O objetivo é iluminar o personagem, para tentar depois julgar sua Presidência. Abortada a tentativa de aproximação com Brizola, Itamar acabou sendo o vice de Collor, a quem mal conhecia - e um vice contrariado, torturado, permanentemente zangado. Na campanha, já se revelavam enormes incompatibilidades. Itamar vivia às turras com o coordenador em Minas, Hélio Costa, justamente o homem que o havia apresentado e recomendado a Collor. Ameaçou renunciar várias vezes.
Itamar é um espécime raro na política - um ser dotado não de vaidade, mas de orgulho. Todo político é vaidoso. Em matéria de orgulho, no entanto, é zero. É xingado num dia e no seguinte alia-se a quem o xinga. E, longe de impor exigências do tipo "Ele que venha aqui, se quer falar comigo", vai aonde quer que seja, para atingir seus objetivos. Itamar é quase zero em matéria de vaidade. Ninguém o acusará de querer aparecer, ou de pretender aparentar mais do que é, ou ter mais do que tem. Ao contrário, freqüentemente se coloca em situação inferior à que merece, como na primeira vez em que foi ao cinema com a namorada June Drummond. Foi sem avisar os responsáveis pelo cinema, em primeiro lugar, sem ter comprado os bilhetes com antecedência, em segundo, e, em terceiro, ao deparar com o cinema cheio, ofereceu-se até para sentar no chão. Não se dirá que a vaidade de Itamar é exibir ausência de vaidade. Não. Sua alma está genuinamente mais para as ruas do que para os salões, mais para o pão de queijo do que para o caviar, mais para o pangaré do que para o cavalo de raça.
Em compensação, quanto orgulho!, e como é fácil ele sentir-se com o orgulho ferido. A primeira capa de VEJA sobre seu governo, logo após o afastamento de Collor, refletia a decepção com a formação do ministério com o título: "Início pífio". Itamar ofendeu-se, ficou meses sem receber representantes da revista e até hoje, mesmo recebendo-os, não perde oportunidade de referir-se ao caso, como se viu pelo diálogo atrás reproduzido. O "início pífio" foi guardado no congelador. Itamar tem a tendência a sentir-se vítima - das pessoas, das circunstâncias. Isso explica que a Presidência tenha sido "sofrida".
Com freqüência, ele cerca os eventos, ou seus atos, de emocionalismo. Até a última hora, em 1974, hesitou em renunciar à prefeitura de Juiz de Fora para candidatar-se ao Senado. No último dia do prazo para a desincompatibilização, ainda não havia definição. Como é seu hábito, chamou os amigos e colaboradores para uma decisão coletiva. Fala um, fala outro, discutia-se aqui, discutia-se acolá, e não se chegava a uma conclusão. Há líderes que se isolam para tomar as decisões. Itamar cerca-se de gente. O mais comum é tomá-las em meio ao tumulto, em plena saraivada de opiniões contraditórias. O gabinete de Itamar, tipicamente, nesse dia, era um entra-e-sai que não acabava. A certa altura, quando a maioria começava a se inclinar a favor da candidatura, entra o empresário Alberto Ibrahim Arbex e, muito assertivo, desenvolve opinião contrária. O prefeito estaria agindo "de modo irracional". Seria "um louco", se renunciasse.
Itamar pediu tempo, dizendo que ia para casa, consultar-se com a mulher - ele era casado, na época. Como o prazo se esgotava, alguém tomou a providência de atrasar em 45 minutos o relógio da prefeitura, e foi assim que, pela segunda vez, na História do Brasil, driblou-se um prazo atrasando o relógio. A outra foi em 1967, quando o presidente do Congresso, Auro Moura Andrade, mandou atrasar os relógios da Casa para que a Constituição que então se votava fosse aprovada no tempo aprazado. Itamar voltou dizendo que uma conversa com o motorista de seu Aero-Willys, João Vieira, o havia convencido. Onde estão os papéis? Ele assinaria já a renúncia como prefeito. A decisão foi comemorada com choros, risos e abraços.
Há no episódio elementos que prenunciam o estilo na Presidência. A tendência para a decisão coletiva, em primeiro lugar. O impulso de consultar o motorista se repetiria com a governanta da casa ou com o homem que serve o cafezinho, em outras ocasiões. Itamar acredita arejar dessa forma as discussões complexas com "a voz do povo". A emoção dos choros, risos e abraços é outro elemento característico. "Eu não posso contar o que se passa aqui nesta sala entre o presidente e os ministros", disse Itamar a VEJA, "mas posso dizer que às vezes há lágrimas". O presidente faz uma pausa e acrescenta: "Mais de ministro que do presidente".
Dia de decisão coletiva na Presidência, um entre muitos, especialmente na fase inicial do governo - a fase pré-FHC na Fazenda -, foi aquele em que, num fim de tarde de dezembro de 1992, Itamar convocou Gustavo Krause, então titular daquela pasta, ao Palácio. O pessoal da casa estava todo lá: Maurício Corrêa, ministro da Justiça, José de Castro, consultor-geral da República, Mauro Durante, secretário-geral da Presidência, Henrique Hargreaves, chefe da Casa Civil, entre outros. Aquilo que se convencionou chamar de turma de Juiz de Fora. Quando Krause chegou, começava o Jornal Nacional, e todos se calaram para ouvir as manchetes. Uma delas anunciava que a inflação tinha experimentado o menor crescimento dos últimos meses.
Itamar iniciou a discussão, em seguida, perguntando a José de Castro se tinha preparado a medida provisória que lhe encomendara. Castro disse que sim. Tratava-se da decisão de congelar os preços dos remédios. Castro e Maurício Corrêa começaram então a discutir a medida sob o ponto de vista jurídico. Caberia um mandado de segurança dos que se sentissem prejudicados? Não caberia? Em seguida, Itamar passou a palavra a Krause, que, fortalecido pela boa notícia que acabara de ser ouvida na TV, defendeu com mais ardor ainda sua conhecida posição contra qualquer congelamento. Castro, que diz ter preparado a medida provisória apenas para acatar uma ordem do presidente, sem acreditar em sua eficácia, considerou "brilhante" a exposição de Krause. O presidente ouviu um por um, e todos foram contra. "Você venceu", disse a Krause.
Não acabaram os problemas entre o presidente e o ministro da Fazenda, no entanto, que dois dias depois renunciou. "Fui surpreendido por seu pedido de demissão num dia em que estava saindo para um almoço com as Forças Armadas", conta Itamar. "Eu disse: 'Você não pode deixar para depois do almoço? Não quer esperar eu voltar? Assim conversamos melhor'. Ele disse que não. Então foi naquele momento mesmo."
Se na campanha o relacionamento já havia sido difícil, Collor e Itamar, uma vez vitoriosos, praticamente romperam. "Eu fui vice-presidente apenas porque fui eleito e diplomado", diz Itamar. Com isso se imagina que queira dizer que não participava, tanto porque não lhe davam atenção e o mantinham afastado das decisões, como porque, crescentemente, não concordava com os rumos que tomava o governo. Para o orgulho, ser mantido à parte era uma provação insuportável. Mas é difícil dizer se o pior era isso ou conviver com um governo que fazia tudo ao contrário do que achava que devia ser feito, com sua política liberal, sem falar nos escândalos que paulatinamente iam aflorando de suas entranhas.
A mútua e surda hostilidade revela-se no fato de que Collor designou uma pessoa de sua confiança, Luciana Leoni Ramos, mulher do amigo Pedro Paulo Leoni Ramos, que viria ser o chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos, para secretariar Itamar, durante a campanha. A intenção era mantê-lo dentro do radar do cabeça de chapa. O relacionamento foi-se deteriorando e era já muito tenso por ocasião de uma das primeiras viagens de Collor ao exterior, em junho de 1990, quando foi à Europa para assistir à abertura da Copa do Mundo da Itália. Na véspera de viajar, Collor fez a Itamar uma explanação dos problemas que enfrentaria em seu interinato, o principal dos quais era uma greve de eletricitários. O então presidente disse que não se podia pagar o que os eletricitários reivindicavam. Por que não?, perguntou Itamar. Collor explicou que não havia dinheiro. Itamar insistiu em saber se não havia mesmo. Collor mostrou-lhe os números. Itamar foi-se irritando e a certa altura disse que não queria mais nem ouvir falar nesse assunto. Nesse momento fez um gesto de tapar os ouvidos e acabou derrubando o aparelho que naquela época, antes de ser submetido a uma pequena operação para superar o problema, usava no ouvido. Deu-se então a cena de o presidente e o vice-presidente da República interromperem a discussão para, abaixados, procurar o aparelho no chão do gabinete presidencial.
Era grande o desconforto de Itamar na corte collorida. Numa reunião ministerial para discutir se o programa de privatização deveria começar com uma empresa pequena ou, ao contrário, uma de grande porte - caso em que a escolhida seria a Usiminas -, Itamar não conseguiu ficar calado, como era seu costume em ocasiões formais como aquela. Interveio para perguntar: "Por que essa marcação com Minas?" O presidente do BNDES, Eduardo Modiano, fez o que pôde para tentar explicar que não se queria prejudicar Minas. Collor em seguida tomou a palavra para dizer que a intervenção do vice-presidente não significava que ele era contra o processo de privatização, tanto assim que tinha assinado o programa com o qual ambos se apresentaram à eleição. Itamar enquanto isso abanava a cabeça, em sinal de desaprovação.
Sua situação dentro do governo Collor tinha se tornado insuportável no início de julho de 1992, já depois das denúncias de Pedro Collor, mas ainda longe do impeachment. Itamar chamou o amigo sociólogo Alexis Stepanenko para discutir o problema, e este resolveu pôr no papel uma análise da situação. Num documento que intitulou "O que se quer? O que se tem a ganhar? O que se tem a perder?", traçou os vários cenários - saída de Collor, permanência de Collor, saída de Collor mas também de Itamar, forçado a renunciar - e terminou com uma palavra de ordem: "Opção: poder ou dignidade".
Logo em seguida se entraria no período em que Collor ficou cai-não-cai e então a ordem, para Itamar, foi agir dentro da máxima mineira: nem tão lentamente que pareça desinteresse, nem tão depressa que pareça açodamento. Coincidiu que na época Itamar estava no exercício de uma das poucas missões que recebeu, na Vice-Presidência: era presidente da comissão encarregada de programar a comemoração do segundo centenário do martírio de Tiradentes. Para seu segundo, nessa comissão, chamou um velho conhecido de Juiz de Fora, o professor Murílio Hingel, que havia sido secretário de Educação em seus tempos de prefeito. Murílio ganhou uma sala do outro lado do corredor, no mesmo anexo em que Itamar tinha seu gabinete de vice-presidente.
Em breve a Comissão Tiradentes começou a servir de disfarce para a discreta preparação do futuro governo. Era uma nova Inconfidência Mineira, diriam alguns. A turma foi-se juntando. Stepanenko coordenava a parte técnica, encarregado de realizar um diagnóstico dos problemas e eleger prioridades. Para ajudá-lo, contatou no Rio uma antiga companheira socióloga de Juiz de Fora, Maria Andréa Rios Loyola. Esta, por sua vez, arrastou a amiga, também socióloga, Aspásia Camargo. Na lembrança de um dos membros do grupo, Itamar é tomado da absoluta certeza de que Collor não tinha mais salvação num dia em que foi informado da chamada Operação Uruguai. O vice-presidente recebera do então secretário-geral da Presidência, embaixador Marcos Coimbra, um relato da fabulosa história do empréstimo que explicaria a dinheirama que inundava a Casa da Dinda e outros recantos. Itamar voltou e, depois de repassar a informação aos amigos, concluiu que Collor estava perdido. Pouco tempo depois o grupo de assessoria do vice-presidente, ou melhor, Comissão Tiradentes, ou melhor, grupo de preparação do governo, já era informado dos cargos que caberiam a cada qual. Henrique Hargreaves seria chefe da Casa Civil, Mauro Durante secretário-geral da Presidência, Murílio Hingel ministro da Educação, José de Castro consultor-geral da República, Stepanenko vice-presidente do BNDES. Mesmo os membros mais distantes do grupo seriam convocados a integrar o governo. Maria Andréa Rios Loyola virou presidente do Capes, o órgão do Ministério da Educação que controla as bolsas de estudo. Aspásia Camargo virou presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Ipea.
No grosso, era a turma de Juiz de Fora de novo. Parecia até que eles iam governar a cidade outra vez. Para compor sua equipe de governo, Itamar juntou basicamente dois pedaços de sua vida. Um é o de prefeito de Juiz de Fora, época em que Maria Andréa, depois Mauro Durante, foram seus chefes de gabinete, enquanto Hingel cuidava da Educação e Marcelo Siqueira - que viria a ser presidente de Furnas com Itamar presidente - chefiava a Companhia de águas e Esgotos. Outro é o de senador, época em que tinha como amigões pessoas como Maurício Corrêa (que virou ministro da Justiça) e Jamil Haddad (Saúde). Havia outro senador de quem ele não era muito próximo, mas que admirava, e que lhe devotava um tratamento impecavelmente cordial - Fernando Henrique Cardoso. Alguns dos amigos mais chegados dizem que Fernando Henrique exercia sobre Itamar o fascínio da pessoa que se gostaria de ser. Uma vez ouviram-no dizer a FHC: "Você é bem-nascido, estudou nas melhores escolas, viajou. Por isso está sempre de bom humor".
"Homem de sorte", este é um dos epítetos que se aplicam a Itamar. Essa definição funda-se na face solar da carreira do presidente: eleição para senador, em 1974, contra todos os prognósticos; eleição como vice de Collor, em 1989; chegada à Presidência, com o afastamento de Collor, em 1992. Mas há também uma face lunar, que lhe obscurece a carreira: derrota na primeira eleição em que se apresentou, para vereador de Juiz de Fora, em 1958; derrota na segunda, para vice-prefeito, em 1962; derrota para o governo de Minas, em 1986, para Newton Cardoso. Homem de sorte? Itamar nasceu sem pai, morto de malária dias antes de o filho nascer, e teve uma infância pobre, em que ajudava a mãe entregando marmitas. Talvez o único presidente que rivalize com ele, em matéria de origem pobre, seja Juscelino Kubitschek. Homem de sorte? Bem, talvez, se se considerar que, apesar disso, chegou aonde chegou.
Itamar parecia ainda estar na fase lunar, apesar do sol escaldante que fazia, num dia de 1966 em que passeava pelas ruas de Juiz de Fora com um amigo, Higino Cortez. Ele se candidatava agora à prefeitura de Juiz de Fora, e as chances pareciam nulas. Na rua encontraram um conhecido de Cortez, Alexis Stepanenko, que dava aula de metodologia e técnica de pesquisas na universidade. Stepanenko acabara de realizar, com seus alunos, a título de treinamento, a primeira pesquisa eleitoral da história da cidade, na qual Itamar aparecia com apenas 9% das preferências. Cortez sabia disso e naquele encontro, depois de fazer as apresentações e comentar a pesquisa, aproveitou para fazer um pedido a Stepanenko - que a pesquisa não fosse publicada. Se fosse, Itamar seria prejudicado. Eles se encontravam diante do Instituto Thomas Jefferson, e o sol continuava a queimar impiedosamente. Stepanenko ficou de consultar os alunos, uma vez que não se considerava dono da pesquisa.
Afinal a pesquisa não só não foi publicada como Stepanenko aderiu à campanha de Itamar, para quem preparou um programa de governo. A candidatura foi crescendo, crescendo e no último dia de campanha foi abençoada por uma copiosa chuva. O principal adversário de Itamar, Wandenkolk Moreira, famoso advogado da cidade, reservara a Praça da Estação, local tradicional das manifestações políticas juiz-foranas, para seu comício final. Itamar, sem alternativa, foi fazer o seu no Morro do Imperador, junto ao Cristo que dali contempla a cidade, lugar afastado onde nunca al guém ousara sediar um encontro político. Pois a chuva inundou a Praça da Estação e Wandenkolk precisou cancelar seu comício. Itamar realizou o seu, e no dia seguinte, na Rua Halfeld, onde se formam as rodinhas e circulam os boatos, dizia-se que mais de 1.000 pessoas tinham estado no comício do morro. Mil? Que nada, 5.000, dizia outro. Talvez 8.000, acrescentava alguém. Ou até 10.000. A máquina eleitoral de Itamar, uma pobre e desacreditada geringonça a princípio, atropelava de surpresa os adversários. Ele acabou ganhando por boa margem. Apesar da chuva, naquele dia do encerramento da campanha a face solar da fortuna fazia seu primeiro sinal em direção a um aspirante a político que iria longe.
Agora lá vinham eles, aquela mesma turma, em atropelada em direção ao Palácio do Planalto. Estamos no dia 5 de outubro de 1992. Recorde-se que já os vimos no dia 2, uma sexta-feira, quando Collor foi enxotado do Palácio e Itamar era saudado como novo presidente por uma multidão que tomava seu gabinete de vice. Ele deixou para segunda-feira a mudança para o Palácio do Planalto. Agora lá vinham eles, Itamar, Mauro Durante, Hargreaves et caterva, um exército de Brancaleone no ato de dar o bote no poder. Vinham caminhando pelo subsolo do Planalto, fazendo pelos túneis o percurso entre o anexo e o Palácio, como tatus que finalmente podem emergir à luz do sol. Este foi um presidente que não teve um antecessor para recebê-lo, muito menos para colocá-lo a par dos assuntos correntes. A maioria dos demais auxiliares diretos do antigo presidente também havia desertado. Assaltar o palácio àquela altura foi como invadir uma fortaleza abandonada. "O que eu faço agora?", perguntou Itamar, uma vez instalado no gabinete do 3º andar. Hargreaves, o mais experiente da turma, com décadas de trabalho no Congresso e uma passagem pela Presidência no tempo de José Sarney, tranqüilizou-o: "Deixa comigo". Ele percorreu o palácio, foi ver quais dos seus conhecidos ainda trabalhavam lá. Voltou dizendo que podiam começar a trabalhar. A primeira providência foi redigir a medida provisória da reforma que remanejou os ministérios.
Não se pense que a turma de Juiz de Fora foi sempre a mesma. Em seu primeiro mandato na prefeitura, Itamar tinha como inimigo o advogado José de Castro. Em compensação, um de seus mais próximos aliados era o vereador Tarcísio Delgado, presidente da Câmara Municipal. Em 1986 Tarcísio, então prefeito de Juiz de Fora, não apoiou Itamar, candidato ao governo do Estado, e foi condenado à geladeira em que Itamar coleciona os rancores, para que eles não se estraguem. Em 1988, Tarcísio apoiou, para sucedê-lo na prefeitura, seu secretário de Educação, o mesmo que já exercera essa função na administração de Itamar, Murílio Hingel. Itamar ficou quieto. No último dia de horário eleitoral na TV, anunciou que falaria no programa do PFL. Foi à TV e disse que não tinha candidato. Só pedia que o eleitorado não votasse no candidato do PMDB (Hingel), um pau-mandado do prefeito. Hingel perdeu a eleição.
Por algum motivo o potinho com o rancor a Hingel posteriormente foi tirado da geladeira. O dedicado a Tarcísio não. Tarcísio foi candidato a prefeito de novo em 1992. As eleições foram em 3 de outubro, exatamente quando Itamar estava assumindo a Presidência, e ele atribui sua derrota a Itamar. Este e seus amigos fizeram de tudo para espalhar que, caso Tarcísio fosse eleito, Juiz de Fora não contaria com a ajuda do governo federal. Já dizia Tancredo: "Esse Itamar é difícil".
A arte de acertar, sendo Itamar
Ele tinha deficiências que
prenunciavam que daria errado, mas
prevaleceram as virtudes
Houve uma vez um presidente que, de início desacreditado, considerado provinciano e despreparado, surpreendeu com uma administração à altura dos desafios que enfrentou. Até chegar à Presidência, teve no acaso seu grande cabo eleitoral. Desejara ser governador de seu Estado, mas não conseguiu. Conseguiu inesperadamente ser eleito senador, reeleito e, da mesma forma inesperada, fazer-se vice-presidente da República. Acabou ganhando a Presidência numa das vacâncias mais traumáticas da História de seu país. Muitas vezes desprezado, e até ridicularizado pelos contemporâneos, aos poucos foi tornando mais visíveis as virtudes que os defeitos. Acabou virando o paradigma do homem comum, que, assoberbado pelo destino com responsabilidades incomuns, soube sair-se à altura de seu momento na História.
Seria Itamar Franco esse presidente? O acaso como cabo eleitoral aparece em momentos cruciais de sua carreira - por exemplo, na eleição para o Senado, em 1974. O candidato natural do então MDB em Minas Gerais era Tancredo Neves. Tancredo tinha medo de perder, no entanto. Tudo indicava que, como ocorrera quatro anos antes, a Arena, partido do regime militar, ganharia facilmente a eleição. Daí o fato de ter procurado alguém mais disposto ao sacrifício do que ele próprio, alguém que tivesse menos a perder. Já se viu quanto custou a Itamar tomar a decisão de renunciar à prefeitura para concorrer ao Senado. E no entanto ele foi eleito por ampla maioria, beneficiado pela guinada no estado de espírito do eleitorado, que, de norte a sul do país, propiciou memoráveis vitórias ao MDB. "Dizem que fui eleito pelas enchentes, naquele ano", disse Itamar a VEJA. "A enxurrada de votos na oposição." O MDB elegeu dezesseis senadores em 1974, entre os quais Marcos Freire em Pernambuco, Roberto Saturnino Braga no Rio de Janeiro, Orestes Quércia em São Paulo.
Que espécie de presidente foi Itamar? É a resposta a essa pergunta que, enfim, se vai tentar buscar agora. Em primeiro lugar, registre-se que foi um presidente que assumiu cercado de alta dose de boa vontade e desejo de colaboração, por parte dos partidos e da sociedade em geral, mas que trazia dentro de si, como coágulos infiltrados na circulação sanguínea, e que a qualquer momento poderiam conduzir à autodestruição, características pessoais que o ameaçavam com uma alta probabilidade de tudo dar errado. Essas características pessoais eram:
• Convicções doutrinárias poucas e pequenas;
• Instabilidade emocional;
• Provincianismo.
O refúgio doutrinário mais utilizado por Itamar Franco é Alberto Pasqualini (1901-1960), político e publicista gaúcho que a seu tempo se destacou como apóstolo do "trabalhismo" - seja lá isso o que for. Escreveu o próprio Itamar, no prefácio do livro de Pasqualini recentemente editado pelo Senado: "Pasqualini foi, para o jovem de Juiz de Fora que as circunstâncias trouxeram à primeira magistratura da nação, o grande mestre". Aquela frase de Pasqualini que Itamar citou na conversa com o enviado de VEJA - "...levar os bens da civilização e da cultura a todos" - não foi fruto da inspiração ou das leituras do momento. Ela já estava presente em sua primeira declaração presidencial, aquela feita no tumulto do gabinete de vice-presidente, no dia da saída de Fernando Collor de Mello. A nação brasileira anseia "para que os bens da civilização e da cultura sejam levados a todos os brasileiros", dissera então.
Como fazer para que os bens da civilização e da cultura sejam levados a todos? Eis a questão, que Pasqualini não resolveu, e tampouco Itamar. "Itamar é um socialista fabiano", afirma um seu antigo amigo. Os fabianos, membros da Sociedade Fabiana, fundada na Inglaterra no século passado, são socialistas hoje considerados ingênuos. Itamar queria fazer o bem e não sabia como, essa era a impressão que dava, na primeira fase de seu governo. Queria baixar os preços do remédio, baixar os juros. Muito antes de sequer sonhar com a Presidência, em seus primeiros tempos de senador, uma vez Itamar encontrou uma família nordestina dormindo no chão da Rodoviária de Brasília. Telefonou ao Senado, pedindo que se tomassem providências.
O Itamar que assumiu a Presidência era igualmente inclinado à atuação no varejo e não trazia em seu arsenal instrumentos maiores do que o senso comum. "Seu campo de atuação era a microssabedoria", diz um ex-ministro. Itamar fazia-se de intérprete do pensamento médio. Por que subia a cada dia o preço dos remédios que comprava para a mãe? Acresce que, além da bagagem pouca e pequena, em matéria de estratégias de conjunto e rumos de longo prazo, Itamar carrega em sua biografia uma persistente tendência a colocar-se doutrinariamente na contramão de si mesmo. Em 1986, tendo Newton Cardoso tomado conta do MDB e garantido sua candidatura ao governo de Minas por essa legenda, mudou de partido e foi abrigar-se no Partido Liberal, PL. Não poderia haver nada de mais anti-Pasqualini. Em 1989, aceitou ser vice numa chapa que, liderada por Fernando Collor, tinha o neoliberalismo como plataforma. Agora, em 1992, ao assumir a Presidência, fazia-o na condição de continuador de um mandato a cujas orientações se opunha.
Quanto à instabilidade emocional, não seria preciso gastar muita tinta para demonstrá-la. O país conheceu-a à exaustão. Alguns dos momentos mais marcantes da gestão Itamar são momentos de explosão, como aquele em que saiu bruscamente do carro em que se encontrava, em Juiz de Fora, para tentar arrancar a máquina de um fotógrafo. Os ministros levavam pitos pela imprensa. Houve um momento - o assunto era a isonomia salarial - em que Itamar desafiou o Supremo Tribunal Federal, ameaçou não cumprir-lhe as decisões e fez desenhar-se no horizonte uma crise das instituições. Em outra ocasião, quando morreu sua mãe, Itamar revoltou-se contra a presença de fotógrafos no cemitério. "Será que vocês nunca tiveram mãe?", queixou-se. Mais familiar do que Itamar, nestes dois últimos anos, no país, só as crises de nervos de Itamar.
As relações do presidente com a imprensa, vale dizer, suas relações com o público, situaram-se numa linha que foi da balbúrdia à pantomima. A balbúrdia dominou no período em que dava entrevistas todo dia, ao chegar ao Planalto, na porta. Era o formato ideal para tornar ainda mais devastador o Itamar do varejo, da improvisação e dos recados aos ministros. A pantomima tomou seu lugar nestes dias, em que ele se queixa de que a imprensa não o deixa namorar, enquanto sua assessoria vive deixando vazar para repórteres e fotógrafos que ele estará nesse e naquele lugar, nessa e naquela hora, com a namorada. As relações com a imprensa e outra faceta em que Itamar é muito característico - as relações com as mulheres - têm seu ponto de encontro no fato de que o presidente sempre preferiu as repórteres mulheres aos homens. As repórteres mulheres ele concordou em receber muito mais do que aos homens, e respondeu-lhes os telefonemas com muito mais freqüência. Mas não se pense que resultavam disso conversas muito substantivas. O namorador confundia-se com o presidente, nessas horas - como no diálogo que encetou com uma repórter da Folha de S.Paulo, ainda vice-presidente. Gravado e mandado divulgar por seus adversários, o diálogo tinha mais da cantada de um conquistador do que do relacionamento entre um jornalista e sua fonte.
Alguns mais cruéis não falariam apenas em instabilidade. Falariam de imaturidade emocional. O Itamar carente revela-se, entre outros mil episódios, naquele em que, num despacho com Collor, quando ainda vice-presidente, ficou ouvindo o que o presidente lhe dizia, sempre ouvindo, calado. A certa altura perguntou, abruptamente: "Por que você não gosta de mim?" Acrescente-se, só para encerrar a parte do temperamento, e para voltar às mulheres, que mais familiar do que Itamar, e do que as crises de nervos de Itamar, nos últimos anos, no país, só os namoros, ou supostos namoros, de Itamar. Foram tantas as gracinhas, os galanteios e os sorrisos aparvalhados ao lado de beldades, verdadeiramente dignas desse nome ou não, que quase se diria imperativo incluir na reforma constitucional uma provisão que exigisse do cidadão candidato a presidente da República, além de ser brasileiro nato e maior de 35 anos, que já chegasse devidamente equipado de uma primeira-dama. Não tê-la provou ser desgastante tanto para o interessado direto quanto para o país, e talvez tenha sido motivo de potencialização da instabilidade emocional.
O Itamar provinciano trazia por conseqüência o fato de ser um dos mais isolados, entre os políticos com responsabilidades nacionais. Ele não conhecia ninguém no Rio ou em São Paulo. Não tinha canais de comunicação com o mundo acadêmico, empresarial ou sindical, e mesmo no mundo político sua base era precária e pouco capilarizada. Sendo assim, como deixar de cercar-se do pessoal de Juiz de Fora? Já se falou mal demais do CJF, como doravante chamaremos o Círculo Juiz de Fora. Ressaltemos aqui seu lado positivo. Ele forneceu a Itamar a base política que não possuía, o colchão operacional que não tinha como encontrar em outro lugar. "O governo federal é uma selva", diz um integrante do governo. "Sem alianças de sangue, não se sobrevive." Na verdade, outros sobrevivem pela autoridade, por prestígio ou alianças políticas. Itamar precisava de alianças de sangue, tanto por lhe faltarem as políticas como por temperamento. Pode-se criticar Hargreaves, por exemplo, por tudo, mas ele é que deu conseqüência à Presidência, ele é que conhecia a máquina e sabia fazê-la funcionar.
O CJF teve inclusive um papel, talvez o mais importante de todos, de apoio emocional ao presidente. Itamar foi um chefe de Estado às turras com a chefia de Estado. Diante da perspectiva de um jantar com outro chefe de Estado, primeiro ele preferia não ir. Depois, diante da inevitabilidade de ir, gostaria sempre de ter ao lado um Mauro Durante, o secretário da Presidência, ou uma Ruth Hargreaves - sua importantíssima assessora particular, irmã de Henrique Hargreaves. Mesmo numa solenidade no Itamaraty, é com eles que preferia conversar. O CJF tinha representantes até na casa de Itamar. Moraram com ele, primeiro, Geraldo Faria, e, depois, Saulo Pinto Moreira, dois velhos amigos do torrão natal, sendo que o segundo foi o vice a quem passou a prefeitura de Juiz de Fora quando renunciou para candidatar-se ao Senado. Em casa como no serviço, o CJF fornecia a necessária rede de proteção contra as contorções a que se arriscava no trapézio o difícil temperamento de Itamar.
Nunca é demais repetir que este governo teve duas fases distintas, antes e depois de Fernando Henrique Cardoso no Ministério da Fazenda. Contra o varejo, FHC deu um rumo estratégico à administração, contra o emocionalismo trouxe a racionalidade, contra o provincianismo trouxe o cosmopolitismo. FHC foi importante não só porque engendrou um plano. Foi, sobretudo, porque, ao trazer o plano, e as características já citadas, antípodas de Itamar, conseguiu fazê-lo sem dar trombada com tudo o que vinha em sentido contrário da parte do presidente. FHC, com suas maneiras lhanas, soube impor-se sem que o presidente se sentisse diminuído. "Eu e Fernando Henrique Cardoso nos conhecemos muito bem, sabemos nossos limites e ninguém nos intrigará um contra o outro", disse Itamar a VEJA. Deu-se, no encontro desses dois personagens, um dos mais felizes casamentos da política brasileira. Fernando Henrique salvou o governo Itamar. Em troca, Itamar deu-lhe um governo.
Depois de Fernando Henrique na Fazenda, apesar de eventuais recaídas, predominaram antes as qualidades que as deficiências de Itamar. Essas qualidades são:
• Honestidade;
• Humildade;
• Resistência aos truques de marketing;
• Sincera devoção à democracia.
Itamar agiu sempre que se farejou alguma coisa de podre em seu reino. Mesmo o querido Hargreaves, quando foi acusado, depois se soube que infundadamente, de ter relação com as irregularidades na Comissão de Orçamento do Congresso, foi afastado. Outro velho amigo de Minas, Eliseu Resende, perdeu o Ministério da Fazenda quando se lançaram suspeitas sobre suas relações com a empreiteira Odebrecht. No melhor estilo intempestivo, provinciano e adulador das mulheres, Itamar chegou a nomear, a partir do nada, uma ministra dos Transportes chamada Margarida. Não hesitou em demiti-la, mais tarde, quando se suspeitou que sua gestão estivesse menos orientada pelo interesse público do que pelo particular. Nunca se sabe o que acontece numa máquina gigantesca como o governo federal. Sabe-se lá o que se passa no Ministério da Saúde, por exemplo. O que aflorou, porém, teve conseqüência.
A humildade, em Itamar, assinalou sua grande vitória sobre o orgulho quando ele se demitiu a si próprio do Ministério da Fazenda e entregou-o a Fernando Henrique Cardoso. A partir daí, exibiu uma exemplar noção de limites. Sabia das áreas em que convinha não se imiscuir. Além disso, teve noção dos limites impostos, tanto pelo prazo reduzido de que dispunha como do mandato de vice em que se fundava seu governo. A humildade incluiu, várias vezes, voltar atrás em suas posições originais. Houve recentemente um episódio que ilustrou exemplarmente a briga que, no interior de Itamar, travam o orgulho e a humildade, com vitória final da humildade. Ao saber que o presidente Bill Clinton tinha sugerido a Fernando Henrique um encontro entre assessores de ambos, saiu a campo para manifestar sua discordância com essa hipótese. Chegou a falar, num arroubo incompreensível, que a "transição se faria no Brasil", como se de transição se tratasse - como se FHC ameaçasse assumir a Presidência dos Estados Unidos, ou Bill Clinton transmitir-lhe a do Brasil. O que pareceu é que Itamar se julgava ameaçado em sua autoridade. Ele era ainda o presidente, como podia o outro ser tratado como tal? Nos dias seguintes foi ficando mais calmo, no entanto, e acabou por convidar Fernando Henrique para ir, em seu lugar, à Conferência das Américas, que ocorrerá em Miami em dezembro. Ou seja, a mente fez uma viagem de circunavegação e voltou ao ponto de partida, agora até estimulando FHC a assumir responsabilidades presidenciais antes do tempo. Para honra de Itamar, e sorte do Brasil, nos embates com o orgulho a humildade acabou sempre vencendo.
Tirante o marketing das namoradas, se é que isso é marketing, Itamar, num tempo em que a política foi tão contaminada por essa praga que até lhe parece ser inerente, manteve-se afastado de sua sedução. Depois do momento pessoalmente mais humilhante de seu governo, que foi posar ao lado de uma dama sem calcinhas no Carnaval do Rio de Janeiro, o presidente foi aconselhado a, para contrabalançar os perniciosos efeitos do episódio junto à família brasileira, apresentar-se em público com as filhas. Recusou-se a fazê-lo, como se recusaria sempre a usar a família para seus desígnios políticos. As filhas de Itamar são as mais desconhecidas filhas de presidente que o Brasil já teve desde que entramos na era das fotografias e da televisão.
Mais tarde, quando da morte de Ayrton Senna, os escrúpulos do presidente fizeram-no hesitar se devia ou não ir aos funerais - poderiam pensar que ele se estivesse aproveitando da desgraça alheia ou da comoção popular. A solução foi ir ao velório, para não parecer indelicado ou desinteressado, mas sem se demorar mais do que alguns poucos minutos, e tão tarde da noite que os jornais do dia seguinte não puderam registrar-lhe a presença. Teve-se nesse episódio o melhor Itamar, um presidente de dar orgulho, num momento em que a imprensa de todo o mundo acompanhava o enterro do piloto célebre.
A devoção à democracia é tão sincera que jamais se duvidou que não passasse de trapalhada, por exemplo, o desafio ao Supremo na pequena crise da isonomia. Itamar é um respeitador nato do jogo dos partidos, das eleições, das maiorias e das minorias, como poucos presidentes foram.
Que veredicto, depois disso tudo, conferir ao governo Itamar? Falou-se no início deste capítulo de um presidente que, desacreditado, considerado provinciano e despreparado a princípio, acabou passando para a História como o paradigma do homem comum que, alçado ao poder de surpresa e vendo cair-lhe às mãos uma monumental tarefa, consegue sair-se à altura. Esse presidente é Harry Truman. Ele herdou o poder de um gigante político chamado Franklin Roosevelt, num momento em que a II Guerra Mundial ainda não tinha terminado e restava por fazer todo o arranjo do pós-guerra. Conta-se que, ao apresentar suas condolências à viúva, Eleanor, no dia em que Roosevelt morreu, Truman ouviu, como resposta: "Quem merece os pêsames é o senhor". Nos EUA o nevoeiro é menos denso que no Brasil. Ali eles sabem perfeitamente que Truman foi o 33º presidente.
Mas não é só. Os americanos têm uma visão assertiva da História e preferem valorizar as qualidades aos defeitos. Preferem dizer o que um presidente fez, apesar de suas limitações, a dizer o que ele deixou de fazer, por causa delas. Não se quer comparar aqui um presidente americano - Truman, no caso - com um brasileiro - Itamar. O que se quer comparar é uma visão da História. Os brasileiros, ao contrário dos americanos, têm uma visão negativa, para não dizer masoquista, de sua própria História. Tudo foi ruim. A Independência não passou de um arreglo com Portugal. A República, uma quartelada. Sugere-se que, por uma vez, se supere esse vezo nacional e, por trás do nevoeiro, considere-se positiva a contribuição de um homem que, alçado ao poder em circunstâncias esquivas, e com limitações em sua formação, soube no entanto desincumbir-se à altura da tarefa histórica.
Se esse argumento não convence, acrescentam-se aqui outros dois, um tirado do futebol, outro do Carnaval. No futebol diz-se que o que vale é bola na rede. Sem dúvida, o país que Itamar Franco entrega a seu sucessor tem mais confiança em si mesmo e está mais próximo das soluções do que o que recebeu do antecessor. Isso é o que vale. O resto é drible inútil e filigrana no meio do campo. No Carnaval, sabe-se que povo gosta de luxo, intelectual é que não gosta. Igualmente, quanto a Itamar, intelectual não gosta dele, mas povo gosta, tanto que vem sendo aplaudido em toda parte e, segundo as sondagens, tem altos índices de aprovação. E, se povo gosta, que cesse tudo o que outras musas cantam, porque um valor mais alto se alevanta.
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