10 de Novembro de 2013 - 07:00
Enaltecida pelos amplos direitos humanos e individuais, Carta é também criticada por sua complexidade
Por HÉLIO ROCHA
A Constituição de 1988, documento que, após 21 anos de ditadura militar (1964-1985), firmou as bases da nova democracia brasileira, completa este ano um quarto de século. Vinte e cinco anos após a promulgação, parlamentares, especialistas e ex-deputados que integraram a Assembleia Nacional Constituinte consideram-na um documento avançado, capaz de salvaguardar os direitos humanos e individuais. O consenso é de que, mesmo cumprindo com sua função de estabelecer a organização dos Poderes do Estado, a Carta Magna foi além e assentou as bases de um país que busca superar décadas de populismo, autoritarismo e opressão social. Entretanto, os mesmos ponderam que seu texto, dadas as circunstâncias em que foi elaborado, permitiu que a Lei Maior tratasse de inúmeros assuntos que poderiam ser abordados na legislação ordinária. O resultado teria sido um documento que se coloca como obstáculo, em muitos casos, para o avanço na legislação do país.
É o que pensa o deputado Júlio Delgado (PSB-MG), para quem o texto promulgado em 1988 é muito "pormenorizado". Júlio afirma que isto dificulta o trabalho dos deputados. "Ela é muito enaltecida e talvez seja uma das mais avançadas do mundo, mas deveria ser mais sucinta. Na forma como está, obriga os deputados a proporem emendas ao texto inicial para conseguir mudar uma norma que poderia estar disposta numa lei federal, por exemplo." Até 10 de outubro deste ano, foram aprovadas 75 emendas constitucionais, alterando o texto da Lei Maior, sendo que centenas de propostas de emenda constitucional (PECs) já tramitaram na Câmara dos Deputados. O deputado federal Marcus Pestana (PSDB-MG) é crítico em relação a este número. Ele ilustra sua grandeza ao compará-lo ao histórico de atualizações da legislação americana. "Em mais de 200 anos, foram 23 emendas nos Estados Unidos. Aqui são votadas, às vezes, duas propostas de alteração por noite. É preciso ser mais rigoroso ao atualizar a Constituição".
A discordância quanto à extensão e às minúcias da Carta Magna, inclusive, não é sustentada apenas por atuais parlamentares. O ex-deputado Silvio Abreu Júnior (PDT), um dos juiz-foranos membros da Constituinte, afirma que "as constituições devem dizer muito e escrever pouco". Silvio recorda o momento histórico vivido pelo Brasil, nos anos 1980, para explicar a grande quantidade de disposições encontradas no texto constitucional. "O documento respondeu aos anseios do povo brasileiro pela formalização da democracia, por mais direitos sociais. Por isso, depois de 20 anos de ditadura, a resposta da Assembleia foi como a de um 'gato escaldado'. Incluímos na Constituição diversos dispositivos para impedir injustiças."
Ao convergir anseios populares com o dever de estabelecer as bases do funcionamento do Estado, a Constituinte teria entregue um produto com uma faceta exemplar, de instituições destinadas a garantir o bem-estar social, mas com aspecto denso e analítico, que até hoje precisa ser aperfeiçoado. Outra atual representante de Juiz de Fora na Câmara dos Deputados, Margarida Salomão (PT-MG), propôs, neste ano, uma PEC que busca criar um sistema nacional de ciência, tecnologia e inovação. Margarida postula, ainda, a necessidade de atualização da Carta Magna quanto a sistema eleitoral e arrecadação de impostos. "São dois pontos em que ela deve ser atualizada. A reforma política permitirá maior representatividade da sociedade. Já a revisão tributária pode corrigir certas injustiças de nossa tributação, tornando-a mais proporcional ao ganho de cada cidadão e à arrecadação de cada empresa."
O ex-deputado Paulo Delgado (PT), outro juiz-forano presente à Constituinte, afirma que o legado da Lei Maior quanto ao sistema eleitoral é um de seus pontos falhos. Delgado, ao falar sobre os anos de trabalho, queixa-se da "falta de autonomia para mudar a política que o Governo Sarney (1985-1990) cuidou de não deixar mudar". Ele encontra, na forma como foi concebida a Carta Magna, o alicerce da atual incoerência partidária e ideológica de muitos políticos. "Até hoje, o modelo político brasileiro é o formado pelo sistema eleitoral da ditadura. Por isso, ninguém sente desconforto moral em mudar de lado e aderir ao que não concorda."
Marco zero na história do país
Entre juristas e cientistas políticos, é forte a corrente que sustenta ter sido a Constituição de 88 um marco zero na história do país. Por meio dela, o Brasil teria superado séculos de autoritarismos, golpes de Estado, promessas populistas e um status quo mantenedor da desigualdade social. Esta semana, o legado da Carta Magna será discutido, desta segunda-feira, dia 11, até quinta-feira, dia 14, em evento da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que receberá diversos especialistas em sociologia e direito, além do ex-deputado Paulo Delgado e do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Eros Grau.
O especialista em direito constitucional e organizador do encontro, Bruno Stigert, afirma que, das seis constituições brasileiras anteriores (1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967), nenhuma contemplava os anseios da sociedade. Em contrapartida, a Constituição de 88 teria sido redigida em meio a uma tensão entre oligarquias e setores populares, o que teria resultado em seu texto denso e abrangente, porém, com lastro para garantia dos direitos sociais no Brasil. "Poucas Constituições no mundo foram tão generosas com os movimentos sociais. Ela garante direitos básicos a saúde, educação, alimentação, moradia e justiça. Impõe a ação do Estado na manutenção desses direitos, o que implica a atuação dos poderes Executivo e Legislativo."
O olhar da socióloga Helena Motta para o texto de 88, por outro lado, ressalta o grau de permissividade da participação da sociedade nas decisões do Poder Público. Segundo Helena, a Lei Maior garante a participação do cidadão nos três níveis de Governo (municipal, estadual, federal), por meio do plebiscito, do referendo e das leis de iniciativa popular. "A relevância das leis de iniciativa popular pode ser ilustrada por dois exemplos que mobilizaram de forma extraordinária a sociedade brasileira: a lei que tornou a compra de votos crime passível de cassação e a da Ficha Limpa." Ela também elogia a equiparação dos municípios aos estados e à União como unidades administrativas autônomas. "Como os cidadãos exercem sua cidadania em primeiro lugar no âmbito dos municípios, o fortalecimento destes foi uma mudança extremamente relevante para a democracia local, e, em consequência, para o país."
Apesar da análise majoritariamente positiva, no entanto, também reverbera entre especialistas a opinião de que o detalhismo da Constituição prejudica sua aplicação. Stigert afirma que o mesmo tem por consequência o fenômeno da "judicialização" de decisões do Executivo e do Legislativo. "Um conteúdo abrangente e detalhista, que realiza promessas de todos os tipos, dificulta a compreensão de seus preceitos e delega ao Judiciário muitas decisões, baseadas na Lei Maior, que competem a outros Poderes. Não cabe à Justiça, por exemplo, decidir sobre cassação de parlamentar, como queriam que fosse feito com o deputado Natan Donadon (PMDB-RO)."
Quatro constituintes de JF
Quatro parlamentares juiz-foranos participaram da Assembleia Nacional Constituinte. Além de Paulo Delgado e Silvio Abreu Júnior, estiveram presentes o então senador Itamar Franco, pelo PMDB, e o então deputado Francisco de Mello Reis, pelo PDS. Os quatro atuaram na elaboração de pontos distintos da Constituição, conforme a trajetória política de cada um. Dentre os temas abordados por parlamentares da cidade, estiveram questões sobre direitos humanos, relações internacionais, defensoria pública e infraestrutura urbana.
Paulo Delgado, um dos constituintes mais ativos na elaboração do documento, foi autor ou coautor de disposições em diversos artigos da Constituição, as quais marcaram o novo período democrático brasileiro. Entre elas estão a criminalização do racismo, a inclusão de doentes mentais na "igualdade perante a lei" e a obrigação do Estado brasileiro de buscar a integração com as demais nações latino-americanas. "Fui um Constituinte professor, assim cheguei, assim saí, honrado, mas frustrado", lembra o petista, que se diz decepcionado por não ter conseguido ser mais incisivo na demarcação de direitos sociais. "A Constituição é um documento da arte de vitral, mosaico de desejos reprimidos."
Dois ex-prefeitos da cidade, Itamar Franco (1967-1971) e Mello Reis (1977-1981) atuaram conforme a experiência que traziam de trabalhos anteriores. Itamar, que integrara uma CPI sobre o "acordo nuclear Brasil-Alemanha" para construção da usina de Angra II, foi assíduo debatedor do Artigo 21, que dispõe sobre relações internacionais e o uso de energia nuclear para fins pacíficos. "Ele tinha certa resistência ao uso de energia nuclear, pois acreditava no potencial de outras formas de energia", afirma o presidente do Instituto Itamar Franco, Marcelo Siqueira. Já Mello Reis usou sua experiência como prefeito, quando, poucos anos antes, reformara a Avenida Rio Branco, para discutir sobre tributação e financiamento de obras públicas estruturais em centros urbanos.
Silvio Abreu, que fora secretário de Estado de Interior e Justiça durante o Governo de Tancredo Neves (1983-1984), em Minas Gerais, sugeriu à Assembleia a criação da Defensoria Pública, proposta que recebeu apoio de Ulysses Guimarães e Leonel Brizola. "Apresentei o projeto ao 'doutor' Ulysses e tive de explicá-lo bastante, porque inicialmente ele não compreendeu. Depois, a ideia se tornou amplamente aceita. Se o nosso Estado garantiria educação e saúde públicas, também deveria garantir acesso gratuito à Justiça." A Defensoria Pública passou a constar no Artigo 134.
Nota do editor: O articulista é filho do Cel Art Ribeiro Rocha, natural de Juiz de Fora.
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